A criatividade do Movimento Feminista

Como militante social desde os anos 60, tenho acompanhado com muito interesse todo o debate sobre 1968. Ao mesmo tempo, surpreendida pela pouca importância dada a revolução feminista. Enquanto feminista e sendo parte desta história, resolvi dar minha contribuição. Busquei refletir algumas das mudanças, das demandas, dos enfrentamentos e das contradições do movimento.

Como militante social desde os anos 60, tenho acompanhado com muito interesse todo o debate sobre 1968. Ao mesmo tempo, surpreendida pela pouca importância dada a revolução feminista. Enquanto feminista e sendo parte desta história, resolvi dar minha contribuição. Busquei refletir algumas das mudanças, das demandas, dos enfrentamentos e das contradições do movimento. Nesta reflexão, fica impossível separar a minha vida cotidiana de mulher militante dos meus desejos, frustrações e expectativas sobre os rumos do movimento.

O feminismo é um movimento essencialmente moderno, surgido no contexto das idéias transformadoras da Revolução Francesa e da Americana, em torno da demanda por direitos sociais e políticos, tendo seu auge na luta sufragista. Conquistado o direito ao voto, o movimento arrefece.

O livro de Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”, com sua síntese teórica de que "não se nasce mulher, torna-se mulher", vai dar a fundamentação para o movimento que se desenvolve nos anos 60 e 70. A grande bandeira levantada de que "o nosso corpo nos pertence", questionava as visões morais-religiosas e culturais limitadoras das possibilidades de plena expansão e expressão própria. E de que “o pessoal é político”, trazia para o espaço da discussão política as questões até então vistas e tratadas como específicas do privado, quebrando a dicotomia público-privado, base de todo o pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político.

O movimento também colocou na agenda social o caráter político da opressão vivenciada de forma isolada e individualizada no mundo do privado, identificada como meramente pessoal pelas mulheres. As feministas fincaram o pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão estruturadas por fatores públicos, por leis, pela divisão sexual do trabalho no lar e fora dele, por políticas relativas ao cuidado das crianças. E, ao trazer estas relações para o mundo da política, questionavam a hierarquia, a centralização, buscando novas práticas que pudessem comportar o mundo das mulheres, e reafirmavam sua autonomia frente a outros movimentos e ao Estado.

Além disto, enfrentávamos no Brasil e na América Latina as ditaduras militares, que procuravam silenciar e massacrar todos os movimentos sociais que apresentavam práticas transformadoras. A repressão vai instaurar as marcas de gênero na experiência da tortura, não apenas sexualmente, mas, sobretudo, pela utilização da relação mãe e filhos. Estes são anos difíceis, pois, de um lado, juntas com toda a esquerda, enfrentávamos a violência da repressão, a exploração enquanto trabalhadoras assalariadas e, de outro, deparávamos com a discriminação na família, nos partidos, nas diferentes organizações de esquerda, na igreja progressista, vivendo sob permanente tensão.

Nos anos 70, proliferam grupos de mulheres em todo o país, como os grupos de estudo e reflexão feminista e, como os grupos populares vinculados ás associações de moradores e aos clubes de mães, que começaram a enfocar temas ligados a especificidade de gênero, tais como creches, sexualidade, trabalho doméstico. Este é um período de grande efervescência, florescendo inclusive uma imprensa feminista, especialmente o Brasil Mulher e Nós Mulheres.

De outro lado, na luta contra a ditadura, se estrutura o Movimento Feminino pela Anistia, além da participação nas organizações de esquerda.

Nestes vários espaços, denunciando a opressão, exploração e a ditadura militar, as feministas construíram um movimento autônomo. A defesa da autonomia como um princípio organizativo não implicava uma prática defensiva ou isolacionista que impedisse a articulação com outros movimentos sociais que compartilhassem identidades, mas apenas a definição de um espaço autônomo para articulação, troca, reflexão, definição de estratégias. Acreditávamos que nenhuma forma de opressão poderá ser superada até que aqueles diretamente interessados em superá-la assumam essa luta.

Nesse momento de autoritarismo militar, a discussão sobre a autonomia em relação ao Estado, “o inimigo comum”, não era sequer colocada.

Nos anos 80, cresce o processo de mobilização e novos dilemas são colocados para o movimento. A eleição de partidos políticos de oposição para alguns governos estaduais e municipais, recoloca a questão da autonomia e divide o movimento entre as que ficam apenas no movimento, as que assumem os partidos e a participação no aparelho do Estado, em especial, nos Conselhos da Condição Feminina. No VII Encontro Nacional Feminista, realizado em 1985, em Belo Horizonte, a grande polêmica ficou por conta da participação das feministas no CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher). O temor de todas nós, da perda de autonomia com a participação no conselho não se concretiza porque as feministas que o assumiram fortaleceram e garantiram a autonomia do movimento.

A mobilização para a Assembléia Nacional Constituinte marca bem este período. O trabalho conjunto entre o movimento autônomo, o CNDM e as mulheres parlamentares que agiram durante todo o tempo como um bloco, sem intermediação dos partidos políticos. Isto possibilita um grande envolvimento com grandes conquistas na Constituinte, como a igualdade entre homens e mulheres como direito fundamental. Esta conquista vai também repercutir nos partidos, nos sindicatos bem como na grande maioria dos movimentos sociais.

Esse compromisso do CNDM com o movimento de mulheres e sua autonomia foi também o motivo de sua condenação. No final dos anos 80, através de atos autoritários, o governo Sarney vai paulatinamente retirando a força e destruindo o CNDM.

Nos anos 90, na reordenação que passa a ter a sociedade brasileira diante das drásticas mudanças impostas pelo projeto neoliberal, o movimento se reconfigura inteiramente, mudando a identidade da política feminista. Ela agora vai ter sua visibilidade através do feminismo negro, indígena, lésbico, popular, acadêmico, o ecofeminismo, das assessoras governamentais, das profissionais das ONGs, das católicas, das sindicalistas, isto é, mulheres feministas que não limitam suas atividades às organizações do feminismo autônomo.

Essa diversidade esteve muito presente nos preparativos do movimento para sua intervenção na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em setembro de 1995, em Beijing, na China. O processo preparatório para Beijing trouxe novas energias ao movimento feminista brasileiro, estimulou o surgimento de fóruns em locais que não existiam ou que estavam desativados, de novas articulações locais, de novos grupos ou departamentos em entidades de classe etc.

Importantes setores das feministas autônomas vão agora estar profissionalizadas nas ONGs e vão procurar a crescente articulação ou entrelaçamento entre os diversos espaços e lugares de política feminista através de uma grande quantidade de redes, muitas vezes fomentadas por organismos bilaterais e multilaterais. Estas feministas, na tradição do movimento, tem a preocupação de manter o vínculo com os diferentes movimentos sociais.

No Fórum Social Mundial em 2002, em Porto Alegre, as mulheres se organizam e chamam a Conferência das Mulheres Brasileiras, onde se elabora uma Plataforma Política Feminista a ser entregue formalmente a todos os candidatos à presidência da República, aos governos dos estados, aos dirigentes partidários, deputados e senadores, além de amplamente divulgada através da imprensa. O candidato Lula, até pela história das feministas do PT, assume toda a plataforma encaminhada. Mas, no governo, a relação com o presidente Lula não tem sido fácil. Logo ao assumir o governo, à revelia de toda a articulação e mobilização do movimento de mulheres, Lula não indicou, como se esperava, uma feminista para a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, agora com o status de ministério. Para o cargo indicou uma senadora petista. Com pouco mais de um ano, a substituiu por uma professora universitária, também sem ligação com o movimento. Além disto, o PT tem se mostrado extremamente conservador na implementação de políticas; nem a lei de cotas, aprovada no partido desde os anos 1980, estabelecendo um mínimo de 30% de mulheres nos espaços de decisão foi aplicada no âmbito governamental.

Quando olhamos para trás, nestas quatro décadas, percebemos que os passos dados foram gigantescos. Sabemos, também, que esta é “a mais longa das lutas”. Na nossa tripla jornada, de dona de casa, profissional e militante, continuamos organizando as mulheres para lutar pelos seus direitos e contra toda forma de opressão e exploração. O 8 de março de 2007 e o de 2008, mostraram a retomada de sua organização popular, mais massiva. O caminho não tem sido simples. Temos enfrentado mudanças, dilemas, enfrentamentos, ajustes, derrotas e também vitórias. O feminismo enfrentou o autoritarismo da ditadura militar construindo novos espaços públicos democráticos, ao mesmo tempo em que se rebelava contra o autoritarismo patriarcal presente na família, na escola, nos espaços de trabalho, e também no Estado. Descobriu que não era impossível manter a autonomia – ideológica e organizativa – e interagir com os partidos políticos, com os sindicatos, com outros movimentos sociais, com o Estado e até mesmo com organismos supranacionais. Rompeu fronteiras criando, em especial, novos espaços de interlocução e atuação, possibilitando o florescer de novas práticas, novas iniciativas e identidades feministas. Agora, surgem novas formas de organização, de expressão que temos de fortalecer e participar.

Ao longo destes 40 anos, o feminismo democratiza a sociedade e suas instituições. A luta pelo direito ao voto, tornou a democracia mais democrática. Quando disse que “o nosso corpo nos pertence” garantindo sua possibilidade de escolha, estava democratizando a participação da mulher. Quando lutou pelas cotas, estava tornando os espaços públicos mais democráticos. Organizando o movimento com formas menos hierarquizadas, democratiza os movimentos sociais. Por fim, o movimento feminista trouxe para o campo da política uma série de problemas que não eram considerados políticos.

Analisar, entender, mudar e saber dar respostas às novas situações é o grande desafio para os diferentes movimentos sociais e que as feministas e os movimentos de mulheres vão continuar enfrentando. Esperamos que seja com a mesma criatividade que encontrou ao longo da história.

About the author

Dirlene Marques