Fragmentos da vida cotidiana By Raimundo Neto / Share 0 Tweet Parece que a vida, às vezes, alimenta-se de grandes questionamentos. Se não são assim tão enormes, os questionamentos ou dúvidas, para moverem o mundo (pelo menos o dos outros), são detalhes importantes que nos inquietam, ou migalhas do cotidiano. Paramos para pensar na vida, que vai seguindo como se não nos pertencesse: O que eu realmente gostaria de fazer? Preciso verdadeiramente estar preso ao que não me satisfaz? O amor começa e termina no mesmo percurso? E como se constrói outra vida? Nem todos conseguem se permitir pensamentos-questionamentos tão intensos; não são todos os homens e mulheres que se submetem a reflexões do cotidiano para tentar entender o que realmente os torna dependentes de algum sofrimento ou de alguma relação insatisfatória ou de um estilo de vida que o deixa em estado de ausência. Claro que me livro aqui de quaisquer julgamentos, e por isso me desfaço de quaisquer exemplos, pois aquilo que me satisfaz e permiti que um sol amanheça em meu peito não é o que motiva e ilumina a vida do meu vizinho. Portanto, parto de minhas experiências e observações próximas para construir alguns pensamentos. E o que rolar por aqui, as pedras ou águas, será pura identificação. Cada qual com suas reflexões, ou com a falta delas: vida, amor, parcerias, projetos afetivos etc. As perguntas sobrevivem na falta: Não é o amor direcionado a homens (que fazem parte de suas vidas ou que virão a fazer sentido em breve), nem são os sentimentos alimentados por A ou B que importam, mas a falta-em-si que transforma muitos homens românticos atordoados e de apego voraz em criaturas amargas, desesperadas por não saber escolher entre o rancor e o abandono. Surgem os relacionamentos nos primeiros encontros de quem nunca antes se viu na vida, dos desconhecidos com necessidades parecidas, mas nascidas em épocas diferentes, com disposições opostas; às vezes, surgem os compromissos fantasiados de realidade ou eternidade, brotam sentimentos confusos, mas que momentaneamente calam desejos que são demônios insatisfeitos e enfurecidos. Homens que sentem a falta afogá-los e então se submetem, emergem assustados na superfície de compromissos inventados com os pulmões já escassos de oxigênio de relações passadas: aceitam ofensas como se fossem toques de simples sinceridade ou marcas de uma personalidade, forjam carinhos e engolem muitas diferenças, assumem namoros e visitas que não deixam o coração feliz escrevendo poemas ridículos e sem talento; os planos para o futuro são baseados nos desconsertos do passado, e o presente deixa de ser uma dádiva. A falta (de viajar nos braços do outro que o completa) absorve sua capacidade de discernir carência de um envolvimento saudável; a cautela deixa de ser um soldado atencioso em estado de vigília para tornar-se apenas uma camponês frustrado, convocado para uma guerra sem causas, desarmado, mas sem motivos para não querer voltar. O amor passa a ser qualquer decoração desamparada na vida de um alguém que precisa estar com outro que o faça não desacreditar no amor, no futuro a dois, pois a solidão o aproxima de sua falta, e essa o aproxima de si, e então eles não precisam mais se conhecer. São diferentes de mim? Não têm complexos, nem frustrações para inundar a ilha cheia de sonhos de homens que não virão? Quando digo que ainda sou uma busca usando salva-vidas eles adquirem uma maturidade desértica, árida mesmo, deixando evaporar qualquer resquício de não adequação ou irresolubilidade para relacionamentos duradouros. Resmungam superiores na sua diferença, como se a própria vida mandasse a você um recado sem utilidade: Então, permita-se. Entregue-se a sentimentos que você não carrega consigo; invente uma paixão cheia de olhos cuja cumplicidade seja cega; forje seu dia-a-dia; faça de conta que o amor não vem em arroubos de fim de mundo, mas surge do nada, como mera conveniência, mas se for mesmo conveniente para você não aparentar solidão, despreparo, feridas, o monstro do ego, problemas com a mãe, carreira profissional em baixa, então, diga que ama com uma linguagem sem vida. Você não vai precisar preocupar-se de verdade com eles, você não precisará cuidar sinceramente deles, um pedaço da sua vida não precisará fazer parte daquela outra vida, seus olhos não se abraçarão, nem nada comunicarão nos momentos de vergonha. Suas gargalhadas não precisarão se apaixonar nos vários momentos específicos e profundos nos quais vocês construirão quando algo for motivo de deboche, de alegria e surpresa, ou quando tudo for apenas ridículo. E então, quando o momento da explosão de alegria cúmplice for suspenso, vocês não precisarão piscar os olhos, ensaiar frases destemidas de um amor que se sente eternidade, pois vocês não tentarão mesmo programar uma vida a dois. Construir o quarto perfeito, comprar livros e acumular a poeira dos sonhos vencidos no aconchego do lar que os amigos se sentiriam acolhidos e a família amargaria ofendida? Isso tudo? Você não precisará disso tudo. E sabe por quê? Você não o amará no final, nem no começo. Mas estará com alguém. Então permita-se. Viva algo que não seja um grande amor, ou uma paixão resolvida. Seja outro. Não abrace sua solidão. E não seja você.