O fundamentalismo que mora em nós


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 “A realidade, mesmo se necessária, não é inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali consequências que o não são, vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.” (Marcel Proust in “Em busca do tempo perdido: A Prisioneira”. Editora: Globo. Volume V, 2011.)

No final de semana, iniciando a releitura deste livro, deparei-me com esse trecho que pode ser entendido como o enfoque proustiano sobre as aflições que precedem os peculiares processos de mutação. No livro, Marcel busca a essência do “eu” de Albertine ao encarcerá-la. Todavia, como uma submissão ao fim, apenas, a encontra acordada pelo curso do tempo. Ao limitar o seu espaço, resigna-se-se por não aceitar uma nova mulher que se substitui perante o tempo. 


De modo imprevisto, Marcel cai das nuvens e acorda no concreto. Prefere acreditar que o amor não tem por objeto um corpo, a não ser quando nele se funde uma emoção, o medo de perdê-lo e a incerteza de reencontrá-lo. Mas no final, com a morte de Albertine, só encontra vários “eus” em si, resultado do silêncio indiferente do tempo.


Penso que na expectativa da segurança, a espera dói e a gravidade também. O caus implica a perda do controle e o resultado do caus seria a mudança imprevisível.  Impede-se, assim, o transcurso do passado e do futuro na sequência do amor.  


Antes de referendar os escritos de Proust, penso que as proposições clássicas reafirmam o desejo utópico de um mundo em que as pessoas não mudam a sua essência e que permanecem imunes ao que se sucede. Evidentemente, essas proposições desconsideram a existência das interações humanas e a luta de cada um por si na busca desregrada pela satisfação dos seus desejos. E, por isso, logo se torna improvável que se possa conhecer de forma definitiva qualquer pessoa.


A título de exemplo, percebo  que buscar a estabilidade não se trata de qualquer rompante de incerteza, mas de algo inerente à própria ontologia humana. Quando se renega um espectro mínimo de mudanças, encaro que existe fundamentalismo, descrito no artigo “A Política do Fundamentalismo” como “todo e qualquer movimento religioso, de qualquer que seja a religião, que tende a interpretar a realidade de hoje através dos olhos de antigos preceitos religiosos”, não só na acepção espiritual e política, mas também na emocional, material ou  filosófica. 


Com efeito, não entendo o fundamentalismo apenas nos doze anos e meio de solidão de Salman Rushdie, autor de “Os versos satânicos”, ou nas atuais perseguições de grupos terroristas e intolerância de fanáticos. Percebo-o simbolicamente em várias áreas da nossa vida, principalmente, quando temos uma vida fora dos padrões regulares  ou quando somos pletoricamente distinguidos pelo que o outro nos atribui.


Seria a ideia de Proust de “espalhamento”, ou seja, as pessoas não atravessam o tempo sendo elas mesmas, mas sendo o que se tornam. Do mesmo modo, nós vivemos em um mundo que não suporta opinião. Vinculando, por fim, ideias de retaliações das mais rancorosas, apenas a quem deseja mudanças ou um olhar holístico, fora do padrão cartesiano.


Diria que há “fundamentalismo” quando há a tese artificial da estabilidade do outro e a retirada de pólvora da granada. Quando se descredencia o efeito colateral, podendo existir na palavra a ferro e fogo para o terreno pessoal. 


Na perspectiva proustiana se o amor fosse estável, a sensação de deslumbramento desaparecia, visto que seria acidental e o futuro não mais aterrorizaria. Seria negar a ação da arte, como um ferimento que não fosse um processo endógeno, de forma que haveria na arte uma realidade mais profunda em que nossa personalidade verdadeira. 


Realmente, não há secularização quando negamos um mundo em que somos outros a cada segundo. Lembram os desenhos do Snoopy e a busca pela garotinha ruiva em sua perfeição nos seus sonhos platônicos. Assumem uma postura Nietzscheniana quando afirmam que não deveríamos tentar deter a pedra abaixo, mas a coletividade prefere o padrão e esquece que cada indivíduo é uno e que não há singularidade.


Exercemos, assim, o “fundamentalismo” como regra. Seja ao reafirmar o que se falou sem nenhuma alteração, sem nenhuma concessão. Seja nas nossas decisões imutáveis. Seja na posse definitiva do ser amado, nas nossas amizades, nos nossos bens ou nas nossas ideias. Diria que o ciúme e a posse são os vertentes do fundamentalismo contemporâneo. 


Penso também que há a inércia do “fundamentalismo” no fato das pessoas estarem cada vez mais preocupadas apenas com os seus problemas.  Então o inicio e o fim das questões é a razão do absoluto.  Seria um contraponto acreditar na estabilidade quando se passa por momentos difíceis ou não, mas que, em si, alteraram a forma de agir.


Qualquer situação que, de alguma forma, nos faz lembrar o pensamento multifacetado do mundo, descrito no filme Ponto de Mutação de Capra quando os personagens de “marido fracassado, o poeta faminto e o mau professor” mudam a percepção que todo ponto de mutação se revela na transposição do velho para o novo. Penso que renegar as crises que ensejarão as mudanças durante as existência são idiossincrasias indignamente banais.


Na falta de evidências empíricas, há referências milenares sobre a morte quando os personagens tornam-se prisioneiros. Mais ainda: os ângulos duros só levam  as vinhas da ira, escrito por John Steinbeck, pois quando as “teorias mudam e caem por terra, quando as escolas filosóficas, quando os caminhos estreitos e obscuros das concepções nacionais, religiosas, econômicas, se alargam e se desintegram, o homem arrasta-se para diante, sempre para frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado”.


Paus e pedras podem quebrar ossos, mas não a essência.  Porém, tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás.  E como fala Proust: “Amor tem muito a ver com insatisfação… É uma espécie de desequilíbrio que, só assim, nos leva à plenitude”. 

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Luciana Santa Rita