Revolução feminina e relações de gênero


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O século XX foi marcado por uma grande transformação econômica, social e cultural, com mudanças fundamentais na dinâmica familiar, na relação entre homens e mulheres e na visibilidade de novas identidades sexuais. Nesse século aconteceram as transições urbana e demográfica, expressas pela passagem de uma sociedade, predominantemente rural e agrária, com altas taxas de mortalidade e natalidade, para uma sociedade urbana, industrial e de serviços, com baixas taxas de mortalidade e natalidade. A esperança de vida ao nascer aumentou paralelamente à transformação da estrutura etária. As pessoas passaram a ter uma vida mais longa, enquanto a idade mediana da população aumentou, impulsionando o envelhecimento populacional. Todas estas transformações tiveram conseqüências que não são fáceis de se avaliar no novo desenho de uma reconfiguração social em constante movimento (Alves e Correa, 2003).

Paralelamente às transições urbana e demográfica, uma das transformações de maior impacto no século XX se deveu ao declínio do patriarcado e à alteração das relações de poder no seio da família. Em um quadro de progressos civilizatórios de longo prazo, o declínio do patriarcado, a maior diversidade dos arranjos familiares e a queda da fecundidade só foram possíveis, em função de uma revolução feminina que redefiniu o papel da mulher na sociedade, como mostrou Esping-Andersen (2009):

“The female revolution has profound ramifications. Firstly, women’s biographies have changed radically in an amazingly short time, basically from one generation to the next. The prototypical woman of the post-war decades was destined to housewifery while her daughter more likely opted for a life of employment and of economic autonomy. The lynchpin of this generational rupture was educational advancement and, therewith, the command of good earnings. In a sense, women have experienced a ‘masculinization’ of their life course preferences. In most advanced nations, women now boast more education than men and where the female revolution started earliest, namely in North America and Northern Europe, the vast majority (75%-plus) are employed throughout their lives and interruptions due to motherhood are minimized” (p.1).

A revolução feminina, contudo, aconteceu de maneira incompleta, pois se houve a “masculinização” do ciclo de vida feminino, não chegou a haver a “feminização” do ciclo de vida masculino. Se as mulheres avançaram na conquista de espaços públicos da “produção”, os homens não compartilharam, na mesma proporção, os espaços privados da “reprodução”. Contudo, o século XXI começa de maneira bem diferente em relação às condições de 100 anos atrás.

Sem dúvida, as últimas décadas testemunham mudanças significativas nas relações de gênero. No Brasil, não apenas as mulheres avançaram e obtiveram vitórias e até superam os homens em indicadores como esperança de vida e anos médios de educação. Houve mudanças no arcabouço estrutural e institucional da sociedade. Os tempos mudaram e, se as mulheres mudaram, também os homens já não são os mesmos, as famílias já não são as mesmas e novos atores sociais surgiram em um quadro de mudança da feminilidade, da masculinidade e da sociabilidade de multifacetadas identidades.

Neste sentido, como mostraram Sorj (1992) e Castro e Lavinas (1992) o conceito de gênero é fundamental para superar a concepção de que o equipamento biológico sexual é capaz de explicar o comportamento diferenciado do masculino e feminino na sociedade. As relações de gênero são dinâmicas e determinadas historicamente, com base em construções e descontruções sócio-culturais. Elas envolvem relações de dependência, poder e prestígio entre indivíduos de sexos diferentes, situados em diversas posições e lugares sociais (Alves, 1994).

O surgimento e a consolidação do conceito de gênero deve muito ao movimento de mulheres, mas por isto mesmo, às vezes, gênero se confunde com mulher e nem sempre é fácil se estabelecer as disjunções, conjugações e mediações (Kofes, 1993). Inegavelmente, a definição de Scott (1988): “gênero é a organização social da diferença sexual”, foi um avanço no desenvolvimento do conceito e na superação da “anatomia como destino”. Mas, como mostrou Rodrigues (2005), se a divisão sexo/gênero funciona como uma espécie de pilar fundacional da política feminista, partindo da idéia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído, Judith Butler questionou este paradigma que tem funcionado como um modelo binário, que, mesmo não tendo a intenção, acaba por substituir o essencialismo de sexo, por um essencialismo de gênero.

A crítica de Butler (2003) representa uma desconstrução do conceito de gênero, mas não o seu desmonte ou destruição. O que a autora mostrou é que o arcabouço de relações de gênero não pode ser tratado como uma categoria binária, construída sobre a referência do dimorfismo sexual. Para Butler, o sexo também não é natural, mas sim discursivo e cultural como o gênero. Sexo e gênero são intercambiáveis, pois ambos estão imbricados nas marcas dos constructos sociais. Portanto, dizer que o gênero existe, significa pensar e aceitar as normas culturais que governam a interpretação dos próprios corpos (Gallina, 2006). O rompimento com o dualismo do sistema sexo/gênero é importante por dois motivos:

1) Recoloca a questão da sexualidade no processo de desenvolvimento e evita a sua opacidade nas políticas públicas, estabelecendo um novo campo de direitos ao invés de fazer a sexualidade desaparecer de cena ou ser tratada no campo da marginalidade e da criminalidade. Como mostrou Correa (2008):

“Um obstáculo que enfrentamos quando buscamos estabelecer uma conexão positiva entre sexualidade e desenvolvimento é que muitos pressupostos do desenvolvimento – tanto no campo hegemônico quanto no campo progressista – são contestados pelo pensamento contemporâneo sobre sexualidade. Essa contestação é particularmente flagrante no que diz respeito ao “essencialismo sexual”, ou seja, a idéia de que o sexo é um impulso biológico dado, direcionado à reprodução da espécie, a qual continua sendo uma premissa dos marcos de referência conceituais e das diretrizes das políticas de desenvolvimento. Essa visão está em franco contraste com a perspectiva que pensa o “sexo” como construção sócio-cultural que informa o pensamento, a pesquisa e o trabalho de defesa de direitos progressistas sobre a sexualidade no mundo contemporâneo” (pp 54-55).

2) Assim como as desigualdades de gênero são transversais a outras dimensões do social, as desigualdades sociais também possuem transversalidade em relação às diversas representações de gênero. Isto quer dizer que nem mulheres e nem homens constituem pólos de unidade de análise homogênea, pois os gêneros são heterogêneos e são recortados por desigualdades de classe, cor/raça/etnia, geração, local de moradia, orientação sexual, etc. Existe, de maneira dinâmica, uma redefinição multifacetada do que seja homem e mulher na sociedade. As pessoas, as famílias, a sociedade, o mercado, o estado e as instituições mudam com as mudanças materiais e culturais, em um processo de reconfiguração permanente.

Segundo Pinnelli (2004): “a maior equidade de gênero é fruto de um compromisso de longo prazo e que ocorre simultaneamente em várias frentes – a família, a comunidade, o mercado de trabalho e o Estado -, levando à possibilidade de satisfazer escolhas pessoais em todos os campos, incluindo a família” (p. 70).

O desafio, portanto, é incorporar plenamente as relações de gênero, em sua concepção não dualista, na multiplicidade de situações da dinâmica social em constante movimento e em constante redesenho dos diversos caminhos de mão dupla que constituem o espaço de vivência concreta das inúmeras forças que modelam a relação sexo/gênero na sociedade. Sem dúvida, o avanço feminino contribui para melhores relações de gênero.

 

Referências:

ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. 1994. 152f. Tese (Doutorado) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1994.

ALVES, J. E. D; CORRÊA, S . Demografia e ideologia: trajetos históricos e os desafios do Cairo + 10. Revista Brasileira de Estudos da População, Campinas, v. 20, n. 2, p. 129-156, 2003. 

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

CASTRO, M. LAVINAS, L. Do feminino ao gênero: a construçãode um objeto. In: COSTA, A., BRUCHINI, C. (org). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992.

CORRÊA, S. Sexualidades e desenvolvimento – uma história em imagens. In: CORNWALL, A.  JOLLY, S. Questões de Sexualidade: Ensaios Transculturais. Rio de Janeiro, ABIA, 2008

ESPING-ANDERSEN, G. Families and the Revolution in Women’s Roles, 2009. Disponivel em: http://dcpis.upf.edu/~gosta-esping-andersen/materials/families.pdf

GALLINA, J. F. Pós-feminismo através de Judith Butle. Rev. Estud. Fem. vol.14 no.2 Florianópolis May/Sept. 2006
HERA. Direitos sexuais e reprodutivos e saúde das mulheres: idéias para ação. Nova York: HERA, 1998.

KOFES, S. Categorias analítica e empírica: gênero e mulher: disjunções, conjunções e mediações. Cadernos Pagu. Nr. 1; pp. 19-30, 1993.
KONCHINSKI,V. Feministas vão monitorar imagem da mulher na mídia. Agência Brasil, 17/03/09. Disponível em: http://www.patriciagalvao.org.br/.

PINNELLI, A. Gênero e família nos países desenvolvidos. In: PINNELLI, A (org). Gênero nos estudos de população, Campinas, ABEP, 2004

RODRIGUES, C. Butler e a desconstrução do gênero. Florianópolis, Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1, jan/abr 2005.

SCOTT, J. Gender and the politics of history, Columbia University Press, New York, 1988.

SORJ, B. FONTES, A. MACHADO, D.C. Políticas e práticas de conciliação: Entre família e trabalho no Brasil.In: Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 573-594, set./dez. 2007.

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José Eustáquio Diniz Alves