Outras Palavras By Felipe Damorim / Share 0 Tweet Neste domingo a Folha de S. Paulo lançou mais uma de suas coleções. O tema dessa vez é literatura brasileira, o que explica ela estar sendo mencionada aqui… É também uma ótima oportunidade para questionar o quão relevante é realmente a vertente nacional da arte. Bom, pra ser sincero, “não muito” é a resposta mais exata… Sim, os ufanistas que me perdoem, mas escrever em português não é fundamental. Eu gosto das Coleções da Folha. Isso é algo meio vexaminoso de se admitir. De uma forma geral esse tipo de coleção está muito mais destinada ao enfeite de prateleiras do que a uso diário. Além disso elas tem um caráter ostensivamente introdutório… alguém que possui um interesse de longa data em literatura, por exemplo, dificilmente ia deixar de ter a maioria dos exemplares da coleção de romances do século XX, ou da nova coleção de literatura brasileira. Mas é aquela coisa… nenhuma forma de arte tem muito futuro sem novos conversos. Pessoas que normalmente não teriam interesse ou disposição para obterem obras de alta cultura, ou que até tem interesse mas não sabem por onde começar, têm nessas coleções uma ótima oportunidade para darem seus primeiros passos e enveredarem seus próprios caminhos. Por fim, existe uma vantagem monetária: um livro novo, por quinze paus é difícil de se achar hoje em dia. Essas Coleções saem em conta. Mas como toda coleção, seja da Folha, seja os velhos livros vermelhos da Abril ou os Clássicos Jackson, existem certas opções discutíveis, ou dispensáveis. Deve-se ter em emnte que a escolha das obras que participarão de uma coleção é sempre sujeita a diversos fatores: disponibilidade dos direitos autorais, permissão de editoras, popularidade… A nova coleção da Folha se equilibra delicadamente entre uma reunião de clássicos óbvios (“Dom Casmurro”, “Morte e Vida Severina”, “Macunaíma”) e obras mais popularescas, cujo valor é definido mais por sua notoriedade do que por quesitos literários (caso de “Tocaia Grande”, “Memorial de Maria Moura” e “Um Certo Capitão Rodrigo”, que são criaturas da Globo). No meio termo, algumas opções estranhas. Posso entender a escolha de “Primeiras Estórias” ao invés “Grande Sertão: Veredas”. O último é um livro difícil para o leitor iniciante que é o alvo a da coleção e, com duas edições recentes no mercado, imagino que seus direitos de publicação não sejam os mais fáceis de se liberar. Mas porque limar “Vidas Secas”, que é simplesmente um dos melhores romances do século XX, ponto? E, para adicionar insulto a injúria, optar pelo arroz-com-feijão “Infância”, quando poderíamos ter “Angústia”, outro grande romance? Ou porque publicar “Sentimento do Mundo”, que não é nem tão bom quanto “Alguma Poesia” nem tão impactante quanto “A Rosa do Povo”? Que lógica editorial é essa que apresenta escritores através de algo que não seus melhores trabalhos? A Coleção da Folha prioriza autores teoricamente mais “acessíveis” ou, em francas palavras, com maior exposição na mídia, do que realmente relevantes para a literatura brasileira. De que outra forma pode se explicar a presença de Antonio Callado e não a de autores ridicularmente mais importantes como José Lins do Rego, ou Clarice Lispector? Além disso a coleção tem um viés francamente contemporâneo, que termina por tirar da lista autores cruciais como José de Alencar (um dos maiores gênios da literatura brasileira, frequentemente injustiçado) ou Álvares de Azevedo (que é o que tentam te convencer que o Nelson Rodrigues foi). Coisas de mercado: esses autores provavelmente estão “guardados” para uma segunda leva de títulos da coleção. ************ Claro que essa prosa provoca uma questão fundamental: mas vale a pena ler literatura brasileira? Ela é relevante na literatura mundial? Bom, não. É isso aí, não. Vou te enrolar pra quê? A literatura brasileira não é relevante em termos universais. Mas nem por isso ele é desprovida de valor. Existe no Brasil um certo ufanismo desrazoado que tende a se tornar muito vocal e agressivo ao menos sinal de dissensão do discurso oficial de que “a cultura é nosso bem mais precioso”. Na verdade, da última vez que chequei, nosso bem mais precioso era petróleo (100 doletas o barril). Aceitando a possibilidade de incorrer na ira dos xiitas que não hesitam em taxar de anti-brasileiro qualquer um que não acha que Tropa de Elite merecia o Urso de Ouro, esclareço que nossa cultura é um monstro meio elitista, que reproduz profundamente nossas distorções sociais e econômicas. Eu poderia dedicar linhas e linhas a reclamar sobre isso, mas é melhor, por hora, afetar um mínimo de coerência e me ater à literatura, tentando explicar o levou Antonio Candido a definí-la como “um ramo de um arbusto menor no bosque das letras”. Que a literatura brasileira é desconhecida internacionalmente, isso você deve saber. O discurso padrão da turma do oba-oba é de que a culpa é do poder público, que não faz propaganda de nossos autores e palavras pelo mundo afora. Embora isso seja verdade, é também um tanto reducionista… sem mencionar que culpar o governo por tudo não só é conveniente demais como de um paternalismo reverso maligno (Ou será que a sociedade brasileira, diferente da de outras nações, não pode se organizar e atuar sem aval do governo? Nós somos o fracasso do liberalismo). O problema da literatura brasileira é mais geopolítico e linguístico. Geopolítico porque o Brasil tem muito pouco peso nas questões internacionais. Apesar de nossa própria vertente de sub-imperialismo garantir uma esfera de influência quentinha para nós aqui pelas bandas do Cone Sur e quintal andino, Pindorama ainda é o país que foi, certa vez, brilhantemente descrito como “o extremo ocidente”: distante e exótico, sem importância política. Esse papel coadjuvante (e, por vezes, subalterno) carrega muito peso contra a influência de nossa literatura pelo mundo. Vale lembrar, cultura e imperialismo andam de braços dados. Desde o Egito antigo dominação cultural é uma das ferramentas prioritárias de conquista e isso não mudou até hoje… basta verificar que os autores mais importantes dos últimos séculos estão todos localizados nas nações imperiais… França, Inglaterra, Grande Irmão do Norte, a Rússia Czarista. Somente no século XX, e no contexto do multilateralismo é que começaram a surgir vozes fora do eixo principal de dominação. Cuba, Peru, Colômbia, Chile, Argentina, até a Guatemala contribuiu com autores de peso, que puderam conquistar espaço na plêiade dos talentos universais. Mas nós ficamos de fora. É aí que surge o problema número dois: escritores brasileiros insistem em escrever em língua portuguesa. E o português, amiguinhos, apesar do que o Fantástico quer te convencer, não é realmente tão disseminado assim. Pouca gente fora da linha Brasília-Lisboa é capaz de ler português, e menos ainda são capazes de traduzí-lo decentemente em outra língua. Pode parecer algo simples, facilmente contornável, mas não é… é um empecilho muito sério, uma barreira significativa para a disseminação de nossa literatura. Veja por exemplo o caso de Joyce… em um país de 200 milhões de brasileiros, só existem uma ou duas pessoas (eu diria uma, deixo vocês adivinharem quem) com conhecimento o suficiente de inglês para traduzir “Ulysses”. E isso porque inglês é parte do currículo básico da maioria das nossas escolas. Imagine então quantas pessoas além do Oiapoque são capazes de traduzir Guimarães Rosa para suas respectivas línguas nativas. Não dá. E é por isso que ao autor de “Sagarana”, um talento extraordinário e sem rivais dentro da nossa fronteira linguística, está fadado a ser uma nota de rodapé na História da Literatura Universal. (É a moral Joseph Conrad: Escreva mal, mas escreva em inglês.) Pode-se claro argumentar que, no frigir dos ovos, os escritores nacionais simplesmente não são tão bons quanto os importados. Posição meio radical, mas tem lá seu ponto… é forçoso admitir que nunca tivemos alguém do nível de Proust, Borges, Faulkner, Tolstói ou García-Marquez. Literatura nunca foi realmente a arte preferida do povo brasileiro (ganha um biscoito quem não souber soletrar por quê). Mas temos nossos talentos de nível universal, como Machadão e Graciliano Ramos. Sem mencionar gente como Clarice Lispector que, vá lá, não era nenhuma Virginia Woolf, mas era no mínimo tão boa quanto Flannery O´Connor, autora que detêm mais influência e respeitabilidade porque, afinal, escrevia em inglês. Se faz o orgulho nacional se sentir melhor, adianto que ao menos Brasil não sofre sozinho essa alienação dialetal… Joost Van Den Vondel foi um dos maiores escritores de sua época, um gigante épico a par de John Milton ou Dante. Mas hoje é praticamente esquecido dada a triste sina de ter escrito sua grande obra, “Lúcifer”, naquela aberração germânica que é o idioma holandês. (Aliás questão artística para vocês: porque não existiram grandes compositores holandeses? A excelência em certas formas de arte é monopólio de povos específicos? Ou existe uma explicação social para que a Holanda, que produziu bons escritores e pintores de apelo eterno, nunca consegiu juntar um dó ré mi decente? Se alguém da família Bach estiver por aí e puder elucidar isso, agradeço.) Então, pois é, amiguinho. A literatura brasileira, salvo mudanças drásticas nas circunstâncias, não é das mais influentes pelo mundo. E ela também, assim como as outras literaturas de todos os povos, tem seus autores medíocres e meia-bocas. Não é só porque é brasileiro que é bom… respeitem o (pequeno) limiar entre patriotismo e falta de senso crítico. Porém, isso não quer dizer que a literatura da casa deva ser descartada. Focar apenas o estrangeiro é só outra forma de miopia. Como Nelson Werneck Sodré apontou, a formação de uma literatura autóctone é parte necessária do desenvolvimento de uma nação. A literatura brasileira pode, em grande parte, ser deficiente em poder universal, ou até ter essa qualidade mas ser aleijada pela barreira da língua. Mas ela tem valor por ser barsileira, por ser nosso veículo de auto-reflexão, construção de identidade e consciência nacional. Para brasileiros, nossa literatura é relevante por que é nossa, e isso basta. Universalidade não é a única coisa importante. E reconhecimento internacional, embora pareça bom enquanto idéia, é bem menos crucial que o reconhecimento de nós mesmos. Não existe povo sem histórias. É nossa alma. Vá conhecê-la.