Quando Paris Alucina By Carlos Venturelli / Share 0 Tweet Pois é, se naquela época em que decidi percorrer mundo já existisse o OPS!, eu poderia ter seguido os bons conselhos do Pedro Serra para mochilar. Mas não foi assim e posso dizer que a minha aventura foi qualquer coisa, menos um passeio turístico. Conheci um violonista em Copacabana, o Rogério Bicudo, e nos entendemos muito bem no plano musical. Eu tinha um grupo de choro e samba chamado "Sambou Dançou", com uns amigos e o Rogério propôs uma viajem à Ibiza, lugar que segundo ele, era ideal para tocar no verão e ganhar uma grana. Depois de um ano de planejamento, eu, o Eduardo Gomes, o Ivan e o Delcio Carvalho (o compositor de "Sonho Meu", interpretado pela Dona Ivone Lara), decidimos partir para a Espanha. Eduardo, eu, Délcio, o pai do Edú e o Ivan, poucos dias antes da partida Todos compraram a sua passagem de avião, menos eu. Minha mãe tinha uma amiga cujo filho trabalhava no já extinto Lloyd Brasileiro, o qual me incluiu numa lista de espera para embarcar em um dos cargueiros desta companhia que zarpasse para a Europa na data que havíamos planejado. Como no navio não há limite de peso para a equipagem, combinamos que eu levaria os objetos mais pesados do grupo. De modo que minha equipagem se compunha de um amplificador Giannini dos grandes, um atabaque, um pacote de posters que a Riotur nos deu para divulgar o Rio e os nossos concertos, meu bandolim e duas malas grandes cheias, com tudo o que eu achava necessário para sobreviver muito tempo longe de casa. Eu no porto do Rio com o Itapagé ao fundo, momentos antes de zarpar. A viagem no "Itapagé" foi maravilhosa. Durou 12 dias, durante os quais eu tive a oportunidade de cruzar o Atlântico emulando, em sentido oposto, a viagem dos meus bisavós italianos que vieram para o Brasil no final do século XIX. O mar tinha uma cor azul cinzenta muito mais escura que no Rio de Janeiro. Peixes voadores, delfins e o bom tempo me acompanharam nesta inesquecível travessia. Tinha um camarote grande e cômodo, sem luxo, mas com mesa para escrever, armário e banheiro individual. A comida, compartida com os oficiais, era boa e farta. A escotilha do banheiro do meu camarote Meu destino era Hamburgo, onde eu deveria pegar um trem para Barcelona e de lá a Ibiza, um Ferry. Durante o trajeto, fiz amizade com todos os tripulantes, incluindo o mais importante, o cozinheiro. Num navio de carga, se você não fizer amizade com o cozinheiro, sua viagem pode ser um pesadelo. Nos reuníamos de noite, marinheiros e eu, no camarote do cozinheiro para tocar samba, choro, cantar e beber. Ele tinha um armário enorme cheio de bebidas importadas de todo o mundo. Ainda fizemos uma escala nas Ilhas Canárias, onde depois de passear o dia inteiro, tocamos um pagode na proa do navio atraindo atenção de todos os que passavam pelo porto de Las Palmas de Gran Canaria. Chegando em Hamburgo, os tripulantes do meu navio, me convidaram para conhecer um bar brasileiro em St. Pauli, o "Tropical Brasil nº1. Eu deveria pegar o primeiro trem para Barcelona, mas não podia deixar passar a oportunidade de conhecer um pouco daquela cidade tão interessante e a primeira que eu pisava no "velho mundo". No bar, conheci a tripulação de outro cargueiro brasileiro que me convidou a ficar até o dia seguinte para a inauguração do Tropical Brasil nº 2. Me ofereceram pernoitar no seu navio, pois tinham um grupo musical com baixo, bateria e tudo. Foi o maior barato, tocamos todos no Tropical Brasil, numa noite memorável. Então, já haviam passado duas noites, com os gastos que isso supõe. E eu, ingênuo, achava tudo barato. No Brasil, um maço de cigarros custava mais de 2.000 cruzeiros e na Alemanha com duas moedinhas eu comprava o meu cigarro. Parecia muito barato, só que aquelas duas moedinhas valiam o dobro do montão de notas que custava o cigarro no Brasil. Resultado, em três dias gastei quase 400 dólares em cigarro, cerveja, hamburguers (lógico em Hamburgo) e no "Sex Kino" (cinema de sacanagem), toda uma novidade para um brasileiro daquela época com vinte e quatro anos. Eu ia para a Espanha trabalhar e só tinha 700 dólares no bolso. Assustado fui comprar a passagem para Barcelona na estação. Como já estava quase três noites praticamente sem dormir, pensei comprar uma passagem em algum trem com cama. Na minha ingenuidade, imaginei que uma passagem de primeira classe incluiria uma cômoda cama, igual as dos filmes. E aqui começaram os meus problemas. Convite para a inauguração do Tropical Brazil nº 2 Por desconhecimento do idioma alemão e pela falta de informação, comprei uma passagem para Paris, das mais caras. Minha surpresa foi quando vi o trem e percebi que não tinha cama. Era muito bonito, mas não tinha cama. Tampouco um lugar onde por a minha volumosa equipagem, que tive que deixar no espaço que existe entre um vagão e outro, por onde entram os passageiros. Isso já me inquietou, pois morto de sono, não podia dormir com medo de que me roubassem tudo. Alem disso o trem parava em cada estação que passava, obrigando-me a levantar para estar ao lado das minhas coisas enquanto os viajantes entravam e saiam. Assim, até chegar a Colônia, quando veio a segunda grande surpresa: o trem não ia direto até Paris, eu tinha que mudar de trem. Graças a umas amáveis jovens alemãs que falavam inglês, pude selar a minha passagem para Paris. Outro dia sem dormir, vigiando as minha coisas. Já de noite, com a minha passagem de "primeira classe" na mão, encontrei o trem. A estação tinha tanta gente (era verão, e no verão a metade da Alemanha viaja para o sul) que estava ficando assustado. Então, conheci uma garota que falava espanhol e decidimos viajar juntos. Na hora de embarcar, havia tanta gente nos vagões que as cabinas foram rapidamente ocupadas e alguns estendiam os sacos de dormir no corredor e ficavam aí mesmo, no chão. Foi então, de pé e apertado num dos corredores do trem, que minha amiga me disse: vamos ficar aqui mesmo. Aí eu falei: eu não! Tenho uma passagem da primeira classe! Então ela me informou que o vagão da primeira classe estava no final do trem! E eu com aquele montão de bagagem num corredor cheio de gente, onde mal podíamos caminhar. Daí eu pedi pra ela tomar conta das minhas coisas, enquanto eu ia e vinha. Primeiro eu levava uma parte até o fim de um vagão e voltava para buscar outra parte, e assim até chegar à primeira classe, oito vagões depois. Vários dias sem dormir, a cara cheia de barba, todo despenteado e cheirando a bacalhau, cheguei à primeira classe. Foi então quando descobri que primeira classe não é o mesmo que carro-cama. Ou seja, não tinha cama. Mesmo assim fiquei feliz porque este vagão não tinha quase ninguém. Quando entrei na cabina, só tinha uma velha que me olhou com cara de assustada e disse: "this is the first class!" Sentei, olhei pra ela e ri com vontade mandar ela tomar vento lá fora. A viagem, numa poltrona incômoda pra caramba pois não dava pra inclinar, durou mais de oito horas com o trem parando em cada estação que passava. Em cada parada alguns entravam e outros saíam, de modo que não houve nem um momento de tranqüilidade ou silencio. Já em Paris, consegui comprar uma passagem para Barcelona no Talgo, COM CAMA, que era a minha única exigência. Tive que esperar outro dia inteiro na estação do Norte tomando cerveja pra não dormir, vigiando a famosa bagagem. Neste trem, sim que dormi a noite inteira "de puta madre" como dizem aqui. Depois de toda esta façanha resumida aqui, cheguei a Barcelona, meu destino inicial, com apenas quatro mil pesetas no bolso (na época das pesetas) para comprar a passagem do ferry à Ibiza. A passagem custou 3.600 pesetas. Fui buscar a minha bagagem, menos o meu bandolim que não saiu da minha mão nunca, e descobri que tinha mandado a bagagem como carga, ou seja, não viajou no mesmo trem que eu e só chegaria quatro dias depois. PUTA QUE PARIU!!! Lá estava eu, sem dinheiro, sem bagagem, com destino a uma Ilha desconhecida, com mais de quatro dias de atraso e sem a garantia de que meus amigos estivessem esperando-me no porto. Para arrematar, tinha um telefone de contato de um tal "Pepe" do club Mediterrâneo de Ibiza. Telefonei esperançado e perguntei pelo Pepe. A telefonista me perguntou: "Qual Pepe?" Eu falei: – O Pepe! Está sempre por aí pela piscina (era o que me disseram)! E ela disse: "aqui tem um montão de Pepe!" Na Espanha, Pepe é o apelido mais comum. Minha última esperança se desvaneceu. Não pude nem beber água no ferry, porque tudo lá era pago, até a água. E a água da bica era salgada. O resto dos passageiros me olhavam desconfiados pela minha aparência. Humilhado, triste e desiludido, nem quis ver a chegada ao porto de Ibiza. Fiquei sentado numa escada, com vontade de chorar quando finalmente ao desembarcar, vi os meus companheiros que vinham ao porto todos os dias pra ver se eu chegava. Depois me disseram que tinham decidido que aquele seria o último dia que viriam a esperar-me. Que alegria, que felicidade, que amigos!!! Me levaram para tomar café – era de manhã – e eu comi a minha primeira omelete espanhola e fui dormir. Isto é só um pequeno resume da minha aventura, o que me levou a lembrar pelo resto da minha vida, do refrão de uma música dos Paralamas do Sucesso chamada "Melô do Marinheiro", cujo refrão diz: "entrei de gaiato num navio, entrei, entrei, entrei pelo cano!"