Digressão sobre a paralisia crítica

Os Simpsons

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Baudelaire escreve sua apresentação do Salão de Arte de 1855 (ou 1856, que eu não me lembro) e descasca os burgueses do seu tempo num texto cheio de ironia, veneno e cinismo. Registrou-se na época que as reações foram de suave perplexidade, os presentes se perguntando se o poeta queria afirmar de fato o que afirmara, ou se era um tremendo de um espírito de porco tirando onda da cara de cada um deles.

Muito tempo depois, em fins do século XX, estreia um dos mais ácidos programas da história da TV: Os Simpsons, um desenho animado cheio de ironia, veneno e cinismo. É exibido desde 1989 pela Fox. Repito, e o leitor leia lentamente: é exibido desde o início pela rede de televisão Fox.

Minha posição hoje, assistindo a um episódio d’Os Simpsons, como aquele em que faz piada da total parcialidade da rede Fox em favor de qualquer candidato republicano, por mais canalha que ele seja, é análoga à do burguês intrigado com os elogios duvidosos de Baudelaire: será que a rede Fox é um exemplo de um conglomerado comprometido até a medula com o espírito democrático? Ou estará exibindo um cinismo invencível, de quem se sabe acima de qualquer questionamento ético? Ou ainda, será a materialização do capitalismo perfeito, que acolhe a crítica mais acerba, neutraliza-a, e lucra com ela?

Há uma espécie de dissociação entre significante e significado, na verdade uma dissolução total, em que forma e conteúdo deixam de indicar quaisquer sentidos. É fenômeno típico do nosso tempo, essa confusão semântica que nos deixa atordoados, anestesiados, prontos para aceitarmos qualquer mensagem sem nenhum tipo de questionamento crítico porque estamos saturados de informações e incapacitados de filtrá-las, de ordená-las ou hierarquizá-las. E, apesar de fenômeno do século XXI, não é de modo algum original. Esse resultado espantoso, de paralisia crítica, já fora descrito por ninguém menos do que Adolf Hitler, no Mein Kampf. O homem exausto pelo trabalho alienante é presa fácil de quaisquer mentiras que se lhe queiram impingir. Mas Hitler falava do trabalhador braçal, do operário. Já o indivíduo contemporâneo cujo aparato crítico encontra-se paralisado é de outra espécie: supostamente mais informado, mais livre, mais consciente, mais antenado.

Essa paralisia é distinta. É uma paralisia voluntária, imensamente confortável. Paralisia glamourosa. Penso nos chamados influenciadores da internet, esses eficientes vendedores, às vezes involuntários, na maior parte das vezes não. Solução fantástica dos publicitários: para que gastar milhões com 30 segundos no intervalo da novela, atingindo um público mais ou menos difuso quando, por uma fração mínima desse valor, se pode comprar o tempo e o entusiasmo de dezenas de influenciadores que se dirigem diretamente para os potenciais consumidores? E não esqueçamos ainda de certo jornalismo que se faz hoje, no qual a peça publicitária substitui a matéria jornalística integralmente, sem grandes tormentos de consciência de nenhuma das partes envolvidas.

Lembro que tempos atrás fiquei chocado ao saber que certas faculdades particulares incluíam praças de alimentação em suas instalações, com os Mc Donalds, os Burguer Kings, os Subways e todos os assemelhados ocupando espaço junto às salas de aula e laboratórios. Mais chocado fiquei ao saber que os estudantes aprovavam a ideia. A biblioteca era meia-boca, mas as opções para o lanche eram fantásticas. Essa fase já foi superada, e hoje há faculdades instaladas diretamente nos shopping centers.

Enfim, como o burguês esculhambado por Baudelaire, ando perplexo com essas coisas. Nunca sei se essa apoteose consumista e ostentatória é ingênua ou cínica. Cinicamente ingênua, talvez.

E depois, quando chegam aos 40 anos de idade, a mulher e o homem corporativos, em crise existencial, concluem que o mundo ficou muito materialista. Surpreendente, não é?

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.