Espaço Transfigurado By Laio Bispo / Share 0 Tweet Há sempre momentos de ironia ao longo da história. As ressonâncias estão sempre a tecer novos fluxos e, muitas vezes, a produzir diálogos anacrônicos, descontínuos. Assim, essas potências (in) atuais, de natureza explicitamente intempestiva, agem e propiciam – à melhor maneira espinosana – bons encontros. Nietzsche e Modigliani estão cronologicamente afastados, estão situados em períodos diferentes; nunca houve, entre eles, qualquer relação direta. Tal afastamento, no entanto, não impossibilita o diálogo e a profunda empatia que há entre as obras desses amigos que se (dês)conhecem e que, por força de uma pathos trágico, mantêm, de forma visceral, uma singular relação com os domínios mais intensos da vida. A questão mais relevante desse diálogo encontra-se no procedimento que ambos utilizam, cada qual à sua maneira, para se manterem em contínua relação com o “fora”. A pintura de Modigliani parece desdobra-se literalmente em um movimento que, por certo, dar-se-ia em termos lacônicos ou, melhor dizendo, sua obra seria uma espécie de pintura-aforismo. Estaria ela dotada de uma espontânea liberdade que a faz interpretativa e, a partir disso, poder-se-ia, também, denominá-la como sendo uma pintura-fisiológica. Não seria Modigliani um fisiólogo comum, mas sim um fisiólogo-artista com todos os cuidados e capacidades afetivas e amorais que o tornam um singular interprete do mundo. Essa relação com o mundo – com a potência implícita nos vividos – faz de Modigliani, e de sua obra, um exemplo de imediata relação com o “fora”. Não há, pois, uma latente interioridade, ou mesmo uma relação mediada a custos com o mundo. Os traços estão longe das representações, são, antes, forças que se produzem numa exterioridade. A pintura salta da tela, deseja o que é vida. Modigliani encontra-se, quase sempre, em consonância com Nietzsche. O filósofo, tal qual o pintor, está interessado em uma expressão que se dê mediante movimentos que proporcionem uma interpretação e avaliação do mundo. Os meios encontrados por Nietzsche são, obviamente, diferentes, mas não opostos aos do artista. Nietzsche funda sua escrita em poemas e aforismos – o primeiro tem por intuito fazer emergir sentido(s), ao segundo cabe a avaliação. É nessa perspectiva, por exemplo, que Nietzsche entenderá que cabe ao filósofo do futuro ser artista e médico – ou, em sentido geral, um legislador. O que caracteriza o estilo nietzschiano é justamente o uso desses elementos da escrita e sua relação não mediada, e sim direta, com o fora. Há,assim como na pintura de Modigliani, uma relação com o exterior que não reconhece interioridades. Tanto Maurice Blanchot, quanto Gilles Deleuze reconhecem essa característica no pensamento nietzschiano; é Deleuze, no entanto, quem nos diz: Com efeito, quando se abre ao acaso um texto de Nietzsche, é uma das primeiras vezes que não passamos mais por uma interioridade, seja a interioridade da alma ou da consciência, a interioridade da alma ou da consciência, a interioridade da essência ou do conceito, ou seja, daquilo que sempre fez o princípio da filosofia. O que faz o estilo da filosofia é o fato de que a relação com o exterior é sempre mediada e dissolvida por uma interioridade, numa interioridade. Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escritura, sobre uma relação imediata com o exterior. (DELEUZE, 1985, p.60) Dessa maneira, por tanto, pode-se compreender que a relação existente entre Modigliani e Nietzsche é, substancialmente, atrelada às intensidades que ambos, cada qual de acordo com suas possibilidades, experimentaram. Nietzsche trabalha a escritura e a faz enquanto intensidade, numa relação entre forças ativas que conduzem a uma vontade que quer na vontade (Vontade de Poder), que não cede aos caprichos das forças reativas. Modigliani, por sua vez, cria, plasticamente, estratégias para escapar das representações. Suas pinturas promovem uma fragmentação do “eu” exposto, figurado. São, sobretudo, figuras-intensivas não representáveis. Modigliani impulsiona, em seu ato criativo, o que há de vital – não apenas o que está em relação mediada com o fora, mas o que dele é parte constituinte e não antes significativa, interiorizada. Os traços do artista, bem como a escrita do filósofo, buscam um saber novo. Escrita e pintura são maneiras de tornar explícita a potência dos corpos; de fazer com que as intensidades e as forças informais – que constituem os desdobramentos da vida – produzam, mediante um aligeirar-se caótico e criativo, novas singularidades. Assim, pois, poderíamos perguntar com Deleuze: O que é uma bela pintura ou um desenho muito belo? Há um quadro. Um aforismo também é um enquadrado. Mas a partir de que momento se torna belo o que está no quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente que o movimento, que a linha que é enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Ela começou acima, ou ao lado do quadro, e a linha atravessa o quadro. Como no filme de Godard, pinta-se o quadro com a parede. Longe de ser a delimitação da superfície pictórica, o quadro é quase o contrário, é o estabelecimento de uma relação imediata com o exterior. (1985, p.60-61) Nietzsche e Modigliani produzem obras a-significantes, a-gramaticais e isentas de territorializações. Criam, com isso, suas próprias maneiras de falar sobre as questões que lhe são correntes; dão às suas respectivas obras um caráter de singular beleza. Ressonâncias biográficas A biografia de Nietzsche indica, em quase todo o seu percurso, uma rara capacidade de descolamento de perspectivas. A avaliação de seus vividos são exemplos claros de uma saúde superior. Modigliani, sob determinados aspectos, também procede por tais deslocamentos; ambos eram instintivamente saudáveis por encontrarem, em suas respectivas doenças, modos de avaliação da vida. Nietzsche, como se sabe, sofria constantes crises; sua saúde era vulnerável e eram recorrentes suas dores de cabeça e perturbações oculares – dentre outros tantos problemas que o impedia de manter atividades regulares, a saber, por exemplo, a leitura. Não se sabe os motivos reais que o levaram, paulatinamente, a uma paralisia geral irreversível, mas esse é, por certo, o momento em que ele perde a capacidade de deslocar perspectivas e é, também, o fim de sua obra. Modigliani também possuía uma saúde frágil, era freqüentemente tomado por crises motivadas por uma tuberculose mal curada. A questão, no entanto, é a maneira como esses artistas da vida souberam tratar seus problemas. Se ambos estão, de alguma maneira, em acordo, é justamente pelo fato de terem – mediante as possibilidades encontradas em suas vidas – experimentado a potência de uma existência transbordante, de uma vida plena. “Um ser tipicamente doente não pode tornar-se são, e menos ainda curar-se a si mesmo; para quem é tipicamente saudável, estar doente pode, pelo contrário, ser mesmo um energético estímulo de vida, de mais vida” (s.d, p.23) escrevera Nietzsche em sua autobiografia. Não faltaram, à Modigliani e a Nietzsche, a delicadeza e a cortesia. Ambos mantiveram-se fiéis às intempestividades, perdições e contingências de uma vida “maldita”. Suas obras são vivências expandidas, ultrapassam o que há de meramente pessoal em uma vida de modo a se produzirem através de formas impessoais, de uma individuação sem sujeito – ou, como diria Deleuze valendo-se de Duns Scot, uma hecceidade. Aforismos, poemas, pinturas: “pacotes de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam” (DELEUZE, 2010, p.175). Fica evidente que as obras desses fisiólogos estão sempre à procura de fluxos de intensidades, reconhecendo em seus estados vividos a potência de uma vida imanente. A alegria e o riso estão, a todo instante, a atravessar suas obras – são, em sentido lato, matérias primas para criação de ambos. Não é mera coincidência que esses médicos da civilização tenham, quase sempre, tido uma saúde frágil. Poderíamos dizer, a respeito desse fato que (…) um artista não pode se contentar com uma vida esgotada, nem com uma vida pessoal. Não se escreve com o seu eu, sua memória e suas doenças. No ato de escrever há a tentativa de fazer da vida algo mais que pessoal, de liberar a vida daquilo que a aprisiona. O artista ou filósofo têm freqüentemente uma saúde frágil, um organismo fraco, um equilíbrio pouco garantido, Espinosa, Nietzsche, Lawrence. Mas não é a morte que os quebra, é antes o excesso de vida que eles viram, provaram, pensaram. (DELEUZE, 2010, p.183) Em suma, essa admirável relação só pode ser estabelecida, e compreendida em seus limites, a partir daquilo que Nietzsche denominou de amor fati. Nietzsche e Modigliani atacam os dispositivos platônicos que impedem o movimento da vida – Modigliani talvez o faça de maneira inocente, mas não menos efetiva. Ambos estão a experimentar o descentramento do corpo trágico, a alegria do corpo não-orgânico – como o fez, também, Artaud. Ora, “Como será possível alegrarmo-nos com o mundo, a não ser quando nos refugiamos nele?” (1992, p.17) nos pergunta Kafka – notadamente imbuído de um espírito trágico. As forças dessas singularidades manifestam-se em formas diversas, múltiplas; estão sempre a voltar à superfície – ao lugar onde as coisas acontecem. Esses agentes da transfiguração produziram novos modos de atuação frente às representações apáticas da filosofia e da arte, cujo longo percurso sempre tratou de dar, monótona e linearmente, um certo embrutecimento às capacidades do corpo-criativo. É nesse sentido que, em acordo com Deleuze, podemos dizer que “Criar não é comunicar mas resistir. Há um liame profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida.” (2010, p.183) Assim, mediante a capacidade extemporânea de suas obras, Nietzsche e Modigliani continuam atuais e a incomodar essa massa passiva de caducos interpretes de um mundo fantasmagórico que reivindica, para si, apenas a tristeza do que é reativo. A pintura modiglianesca, bem como a escrita nietzschiana, são, em primeira e última análise, formas de afirmação da vida em sua pura imanência, conservam em si blocos de sensações, compostos de perceptos e afectos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed.34, 2010. ___________. Pensamento nômade. In: MARTON, Scarllet (Org.). Nietzsche Hoje? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1985. KAFKA, Franz. Considerações sobre o pecado, o sofrimento, a esperança e o verdadeiro caminho. Lisboa: Hiena Editora, 1992. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Lisboa: Edições 70, s.d.