De volta aos números complexos

A Matemática é uma ciência abstrata que se completa em si mesmo, mas também é uma ferramenta poderosa de outras ciências como a Física. Que caminhos devem ser seguidos pela Matemática pura para os seus conceitos atenderem às exigências da Física? Os números complexos, que vão das equações algébricas lineares às funções analíticas de variáveis complexas, possuem recursos suficientes, mas as respostas têm de ser definidas caso a caso a partir da Física para a Matemática e não o inverso. Dar uma idéia de como esses camimhos se formam é o objetivo da minha exposição.

Quando tratei este tema, dois leitores manifestaram suas dúvidas quanto à possibilidade dos números complexos representarem grandezas físicas, dada a natureza “estranha” desses números. Essas dúvidas, freqüentes no aprendizado da matemática, resultam de um raciocínio elementar inadequado. Como é que uma grandeza da “realidade” física, pode ser medida por uma unidade “imaginária”? Sendo “imaginária” não é “real”, não serve portanto para a física, dizem eles. Vejamos então. Em primeiro lugar temos de abandonar a idéia de que, na matemática, o termo “imaginária” tenha o mesmo significado que na linguagem corrente, isto é, que só existe na imaginação. Os matemáticos não se preocupam com esse detalhe. Alfred North Whitehead, no seu livro “An Introduction of Mathematics”, Oxford University Press, 1948, diz o seguinte quanto à aplicabilidade dos termos técnicos: “Termos técnicos são nomes arbitrariamente escolhidos, como os nomes cristãos das crianças. Não é questão de se discutir se estão certos ou errados. O que se precisa saber é se são ou não judiciosos”. Esclarecida a terminologia, passemos ao que interessa. Consideremos a forma algébrica linear, ax+by=c ou ax+by+c=0, que, como dissemos, representa uma linha reta no plano cartesiano. Vejamos o que significa ter esta forma. Para isso, recorro mais uma vez à publicação de Whitehead: “Aqui, a, b, c aparecem como sendo números variáveis, tal como x e y: mas existe uma diferença no uso dos dois conjuntos de variáveis. Estudamos as propriedades gerais da relação entre x e y e enquanto fazemos isso os valores de a, b e c ficam inalterados. Não determinamos quais os valores de a, b e c; mas sejam quais forem, permanecem fixos enquanto estudamos a relação entre as variáveis x e y, em todo o grupo de valores possíveis de x e y. Mas quando obtivermos as propriedades dessa correlação, notaremos que comprovamos propriedades que pertencem a qualquer relação, visto que a, b e c não foram, de fato, determinados. Portanto, variando a, b e c, concluimos que ax+by+c=0 representa uma correlação linear variável entre x e y. Comparados com x e y, as três variáveis a, b e c são chamadas de constantes. Variáveis assim utilizadas são chamadas, às vezes, de parâmetros.”
Consideremos um plano cartesiano onde as coordenadas x e y são números inteiros. Suponhamos, por exemplo, a equação linear 2x+3y=11, que está reduzida à sua expressão mais simples. Se fizermos x=1 e y=3, verificamos que estes valores satisfazem a equação, isto é, são as coordenadas de um ponto da linha reta dada. Para se obter as coordenadas dos demais pontos dessa linha reta, basta introduzir sempre os mesmos intervalos numéricos a partir dos valores iniciais, ou seja, 3 para as abscissas e –2 para as ordenadas. Teremos então x=1+3=4, y=3–2=1, portanto, 8+3=11; x=4+3=7, y=1–2=-1, portanto, 14-3=11. E assim sucessivamente. Quer dizer, 2, 3 e 11 são os parâmetros da equação dada, pois eles definem todos os pontos da linha reta.
Vou explicar de outro modo. Consideremos dois pontos no plano euclidiano. O axioma da geometria euclidiana diz-nos que, por dois pontos, é sempre possível passar uma e só uma linha reta. Essa linha reta pode ser qualquer reta do plano euclidiano. Agora façamos o mesmo no plano cartesiano. Os dois pontos têm posições definidas no plano, portanto, definem uma linha reta que tem a sua posição também definida. Neste caso, as coordenadas dos dois pontos escolhidos são os parâmetros da linha reta que passa por esses dois pontos.
Passemos à equação do 2º grau, a equação quadrática. Na forma algébrica completa com zero no segundo membro, ax2+bx+c=0, as raízes da equação são obtidas pela fórmula quadrática, onde se utilizam apenas os valores de a, b e c. Quer dizer, aqui também a, b e c são os parâmetros que definem a equação. Na fórmula, o radicando b2-4ac é o discriminante, isto é, aquele que nos informa o número e tipo de soluções da equação quadrática com coeficientes racionais. Se o discriminante for positivo e um quadrado perfeito, a equação tem duas raízes racionais, se for positivo mas não um quadrado perfeito, tem duas raízes irracionais, se for nulo tem uma única raiz racional (raíz dupla), agora, se for negativo tem duas raízes complexas conjugadas. Observem que os números complexos entram aqui em condições de igualdade com os outros números, pois têm as mesmas propriedades. Ou seja, com os números complexos é possível realizar todas as operações aritméticas, somar, subtrair, multiplicar e dividir, por isso, são números como quaisquer outros. Com os números complexos todas as equações algébricas, quaisquer que sejam, têm solução. A soma de números complexos é obtida somando, separadamente, a parte real e a parte imaginária desses números; a diferença da mesma forma, só que subtraindo; o produto de dois números complexos é obtido multiplicando cada termo de um número pelos termos do outro número, sem esquecer que i2=–1; a divisão de dois números complexos é obtida multiplicando o numerador e o denominador da fração pelo complexo conjugado do denominador. O seu produto será sempre um número real. É preciso, no entanto, fazer uma observação quanto à aplicação dos números complexos na Física. Vejamos o que diz Richard P. Feynman em “The Feynman Lectures on Physics”, California Institute of Technology, U.S.A., 1963, Vol.I, Cap. 23-1, Ressonância: “O número complexo F que definimos assim, não é uma força física real, porque nenhuma força na física é realmente complexa; forças reais não têm a parte imaginária somente a parte real”. Esta afirmação reforça o que dissemos sobre as equações paramétricas, como sendo as que condicionam o comportamento dos números complexos. Vejamos, por exemplo, a representação do número complexo no plano Argand-Gauss. As operações de adição e multiplicação com números complexos, correspondem a “translações”, “dilatações”e “rotações”, podendo ser interpretadas geometricamente. Consideremos o número complexo z=x+yi, onde x e y são números reais, e a sua representação no plano complexo. No plano xy o número complexo corresponde ao ponto P(xy) e a sua configuração geométrica é a de um triângulo retângulo. Sendo assim, temos pelo teorema de Pitágoras:

z=(x2+y2). Mas para que esta equação seja válida, é preciso que a grandeza z possa girar com centro em O, ponto de cruzamento dos ois eixos, real e imaginário, traçando um círculo de raio z. Admitamos que o valor inicial de z quando coincide com o eixo real, é 12 que é igual a 1. Ao atingir o eixo imaginário, temos i2 que é igual a –1. Continuando a girar, volta a atingir o eixo real em (– 1)2 que é novamente igual a 1. Para evitar a discrepância do sinal, temos de considerar não o valor de z mas o seu módulo ou valor absoluto !z! Assim a equação algébrica correta que representa o número complexo é !z!=(x2+y2). Esta representação do número complexo no plano xy como sendo um ponto P, passa a ter um significado maior se a considerarmos em coordenadas polares. Ela abre o espaço para a representação trigonométrica dos números complexos, o que lhes confere uma “natureza” vetorial, já que se define um ângulo (argumento) e um número real (módulo). O primeiro estabelece uma direção e o segundo define uma grandeza, os dois parâmetros de um vetor. O que quero mostrar com este exemplo é que a matemática é ensinada como matemática pura, mas para as aplicações práticas na Física (e outras ciências), o caminho deveria ser o inverso, primeiro os fenômenos físicos e suas propriedades e depois a regras matemáticas que as explicam. Assim, ficariam evidentes os motivos que levam à escolha da modalidade matemática mais adequada à explicação do fenômeno físico. Além disso, nenhuma teoria científica é completa em si mesma, o que faz com que possa ser interpretada por mais de um modo. Por exemplo, a gravidade foi explicada por Newton que definiu os seus parâmetros através de uma equação, o que permitiu entender o nosso sistema planetário. No entanto, o fenômeno da gravidade em si, como foi gerada na formação do universo, como realmente atua, nunca foi explicado. Os físicos consideram quatro forças fundamentais, a força da gravidade, as forças eletromagnéticas e as forças nucleares fracas e fortes. Alguns físicos esperam que um dia se consiga “fundir” numa só, a força da gravidade com as forças eletromagnéticas, o que, aliás, aconteceu com esta última e depois, quem sabe, absorver numa única as forças nucleares. Se isso fosse alcançado teriamos atingido o ápice, a explicação total do universo dos átomos às galáxias, teriamos desvendado “a mente de Deus”.

É melhor ficar por aqui. Até à proxima então.

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Henrique Cruz