Espaço Transfigurado By Laio Bispo / Share 0 Tweet Julio Medem é um cineasta que não abre mão do esmero processual, técnico e conceitual em sua obra. Motivado por questões diversas e versando cinematograficamente sobre temas muito delicados – e porque não dizer, moralmente conflituosos? -, Julio Medem mantém-se enamorado aos perigos próprios de temas como sexualidade, frustração (das mais diversas, perigosas e cretinas), dentre outras abordagens espinhosas que compõem esse emaranhado poético de fino trato. Julio Medem dirigiu e escreveu alguns filmes, não obtendo, porém, grande êxito em todos. Caótica Ana (2007) é um exemplo de fracasso e equivoco conceitual, um erro que se dá em um momento muito propício de sua carreira, e no qual se esperava muito de sua obra. É, de todo modo, um projeto que veio as telas de maneira irrefletida, confusa – sem fazer, com isso, qualquer justiça ao termo que intitula o filme em questão (Caos). Caótica Ana é o filho acéfalo do autor, e, em última análise uma injustiça com sua própria obra. No entanto – e é bom que se deixe claro – nem só de produções acéfalas vive a obra de Julio Medem. Seus filmes são, em sua maioria, trabalhos singulares dentro da cinematografia contemporânea. O uso e as apropriações que faz em seus filmes deixam claro um envolvimento muito íntimo entre fabulação e narrativa; a destreza com a linguagem cinematográfica, bem como capacidade de criação de histórias que trabalhem e possibilitem o jogo fílmico, fazem de filmes como “Os amantes do círculo polar” (1998), “Lúcia e o sexo” (2001) e “Quarto em Roma” (2010) obras singulares, avessas às repetições, hoje tão comuns ao cinema. O grande mérito das obras citadas consiste na criação de possibilidades interpretativas em nível narrativo-conceitual. Os temas ganham vida e desdobram-se sem necessariamente terem unidade interpretativa; o tema não quer ser entendido, desvelado. Assim posto, a obra impõe-se enquanto estranhamento. “Quarto em Roma”, por exemplo, é uma obra que demonstra muito das questões citadas. É, sobretudo, um filme de intensidades. De cheiros. Um filme-vianda. Assistir a “Quarto em Roma” é um exercício que se empreende com todo o corpo e com feminilidade autêntica. Um saber-se enquanto outro, uma experimentação estética que, a partir do suporte cinematográfico, ganha potência e se faz percebida sem demais explicações por ser um filme que se expõe, que está sendo e que, por força de sobriedade conceitual, se mantém aberto às possibilidades. “Quarto em Roma” tem o mérito de não se valer das muletas da fabulação para encantar. É um filme de linguagem corporal, sensível e de texturas humanas. Há um protagonismo feminino que se constrói de modo muito próprio nos filmes de Julio Medem e que em “Quarto em Roma” ganha proporções plásticas belíssimas. É um estender-se para o desejo e um devir-mulher que se realiza não apenas na sexualidade, mas no ato mesmo de fazer-se mulher diante de um desejo a que nada falta e que não se confunde com o prazer, tão pouco com a vulgaridade. O devir-mulher é desejo. E, de modo geral, o que há aqui, sob determinados aspectos, está contido na idéia de que (…) existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de sas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo prazer, posto que é essa alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa. (DEELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 15) A relação desenvolvida entre as protagonistas do filme pode ser entendida como uma tentativa de estabelecimento de um plano de consistência do desejo. É importante atentar, porém, que talvez não haja um sucesso no emprego dessas possibilidades, mas o que de fato deve ser considerado nessa obra é sua postura diante desse devir-mulher, que não se dá em termos de gêneros, mas de uma capacidade de fazer agenciamentos positivos que permitam uma construção singular da idéia de mulher para além de significações. Bibliografia: DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs 3. São Paulo: Editora 34, 2007.