Existencianálise By Levi Leonel de Souza / Share 0 Tweet Na última quinzena Vanusa Barboza, fisioterapeuta que pensa sua técnica a partir de um referencial existencial, propôs uma série de questões com as quais espero me haver, dando continuidade a uma longa colaboração mútua, entremeando duas abordagens ao sujeito: a medicina fisioterápica e a terapia existencial* (existencianálise). Neste ensaio me aterei às noções de corpo existencial e corpo natural pretendendo, com isso, delinear um pouco mais recortadamente esses dois objetos das medicinas, psicologias e filosofias. A limitação do espaço e tempo torna a tarefa bastante árdua, por isso deveremos fazê-la a quatro mãos, bem como dividi-la em partes, que publicaremos nas próximas semanas. (*terapia existencial[i]) Creio ser necessário defender tais recortes epistemológicos, mesmo que um pouco esquemáticos e talvez artificiais, uma vez que nem todas as disciplinas científicas aceitam, praticam ou percebem dificuldades na abordagem ao corpo, pois, para muitas ciências, o corpo é uma evidência sem problemas, não demandando questões e não suscitando desconfianças quanto ao uso das noções que o definem. Contudo, insisto, muitos de nós, principalmente cientistas da saúde e das humanidades, falamos de corpo como se falássemos de uma única entidade, sem falhas ou equívocos. Isso não me parece assim tão evidente, especialmente a partir dos primeiros resultados de minha investigação em tese de pós-graduação onde me atenho ao corpo como discurso encarnado[ii]. Para essa tentativa de quebrar a evidência-corpo, e com isso contribuir com o aprofundamento da questão, num primeiro momento quero contrastar as duas noções evocadas acima: corpo natural e corpo existencial. Tal contraste visa, em um segundo momento, que haja um “diálogo” entre as noções e, com isso, uma apreensão mais aguda do fenômeno corporeidade. Particularmente a medicina, e aqui farei referência ao recorte fisioterápico, devido a colaboração de Vanusa Barboza, intui que há um ponto de inflexão entre um certo corpo que poderíamos evocar sob o registro orgânico, e um outro corpo que poderíamos interpelar sob a rubrica do social. O diálogo entre essas duas forças, uma orgânica e outra sociológica, não pode ser delimitado com facilidade, pois se dá de modo assimétrico, instável, sem cercas definidas[iii]. Contudo, essa delimitação, por mais que seja plástica, aparecendo como um horizonte e não como fronteiras, poderá auxiliar um pensar sobre a corporeidade e seu duplo, o organismo – e vice e versa. Andemos com as argumentações. Consideremos, pelo menos inicialmente, que o corpo natural se refira ao organismo, matéria, carne, objeto, e que ele poderia ser o corpo real, ou melhor, o real do corpo; aquilo que é feito de tecidos orgânicos, constituinte dos sistemas de órgãos, circulação, respiração etc. Esse corpo da natureza, objeto da intervenção médica e da investigação genética, está para o tato dérmico e é produto das forças biológicas dadas na interação genética de pares sexuais. O corpo existencial se constitui de historicidade, aponta para o contato pessoal, para as pessoalidades, sendo produto de forças sociológicas, embebido em afeto, marcado pelo desejo, vincado pelo querer e desenhado pela imaginação; é labirinto de jogos de poder, sedução, acasos, esperança. Quase na contramão, o organismo é da alçada da ressonância magnética, da cintilografia e outros procedimentos laboratoriais[iv] e está sob a égide de sintomas e curas, deteriora-se, envelhece e desaparece; é opaco, vive na natureza, com limites, fronteiras, diques, cercas, demarcações do tempo e do espaço; o orgânico é um ser-em-si mesmo, coisa entre coisas, a ser estudada; fonte de necessidades, funciona sob leis restritivas da vida. Ainda, podemos dizer que o corpo existencial é plástico, estético, materialidade das ressonâncias afetivas e das cintilações de significados pessoais; marcado pela vida social, significa, miserifica, vira memória quando de seu desaparecimento, é objeto de análise existencial, é campo da psicologia, é linguagem, vive do/no mundo (não na natureza); de limites possui apenas horizontes, se deslocando, criando novos sentidos, expandindo-se; sua natureza mais íntima é a de ser-para-outro[v], ser amado, sentido, desejado, narrado; seara de desejos ele é política, possibilidade, discurso. Se o organismo funciona sob uma gramática vital, onde líquidos, tecidos vitais se entrecruzam e se mantém numa homeostase invejavelmente harmônica a ponto de Descartes[vi] chamá-lo por autômato, máquina perfeita, carnal; já o corpo funciona precariamente, pois evoca o viver, a consciência, os hábitos sociais; marcado pelo discurso, esse corpo está para o sujeito. Como sujeito é uma figura contemporânea, o corpo contemporâneo reflete esse sujeito cuja constituição é a falha, o equívoco, descentramento subjetivo; também o corpo, que é discurso do sujeito (corpo-sujeito),[vii]é avassalado por uma condição de metáfora do sujeito. Insistamos, ainda, na separação dos dois corpos, somente para apontar alguma resposta para a pergunta que encabeça o texto evocado acima: Que sujeito é esse que vai à fisioterapia? Talvez possamos recorrer a algumas provocações com algumas figuras mais ou menos universais em nosso cotidiano. Por exemplo, naqueles casos em que entramos em contato com alguém não esperando amar as trabéculas cárneas e cordoalhas tendíneas do órgão cardíaco, sua massa encefálica ou sua retina; na verdade, desejamos seu olhar para nós e o mundo e não seus olhos, seu amor e não seu coração; suas pessoalidades e não seus neurônios. Nunca entramos em contato com poros ou pilosidades e sim com uma pessoa cuja pele arrepia à proximidade do ser amado. Mesmo que falemos de coração, não se espera que estejamos, a não ser que sejamos médicos, falando da “peça” fisiológica cardíaca; estas “peças” fazem parte daquilo que a medicina espera encontrar, mas nem longe se refere ao que no cotidiano chamamos coração. Por isso, dizemos que ao se falar de pessoa se estará falando de corpo e não organismo, contraponto que fazemos aqui, entre as experiências de organismo e corpo, que o sujeito vivencia em seu cotidiano, na espera que isso contribua para estofar a idéia do que seria o corpo tocado pela fisioterapia. Usamos, para isso, a experiência de terapeuta existencial em contato com duas linguagens pessoais, que transparecem na clínica existencial: a de se experimentar a si mesmo em referência a um organismo – corpo-objeto (idem nota vii) – e a de se vivenciar o corpo-discurso – corpo-sujeito (idem, ibdem) – que é a forma de falar por meio da corporalidade. Corpo discursivo é aquela parte da existência que se dirige para o mundo, para o outro; é propriedade da cultura, portando suas marcas e se tornando seu signo. Assim como dizemos que o cérebro não é a mente, também podemos dizer que corpo não é organismo. O organismo é silencioso, opaco, funciona apesar da pessoa, enquanto que o corpo “funciona” para a pessoa, é erótico, simbólico, vivo; é campo das experiências do existir. Outro exemplo: não falamos, porque temos língua, glote, dentes, garganta, cordas vocais e ar nos pulmões – certamente necessários à fala – mas falamos, sobretudo, porque falar constitui nossa existência. Não somos delimitados pela epiderme; nossa pele é horizonte movente que expressa nosso existir. E porque o corpo é fluente, instável (o organismo é mais estável), vaga ao sopro da moda, da cultura, da ideologia. Aparece como totem, marcado, tatuado[viii], simbolizando sonhos e esperanças de indivíduos, grupos, “galeras”, “manos” etc. Essa sua errância o torna a própria expressão da pessoa-em-situação, pessoa também instável, com demarcação incerta, sofrente, vivente. Estes são, possivelmente, os melhores motivos pelos quais as terapias corporais orientadas existencialmente funcionam melhor: esse fisioterapeuta não toca, ele promove contato; não massageia músculos, derme e epiderme, e sim, por meio da pele, que é a membrana-horizonte do sujeito, o terapeuta evoca as pessoalidades do paciente – os horizontes pessoais. Enquanto as articulações, tecidos conjuntivos, os ossos são partes orgânicas na análise laboratorial, o corpo-signo, atravessado e constituído por valores, é de domínio da análise existencial. Ambos estão enlaçados, mas só o corpo é uma paráfrase do eu; assim, as fisioterapias alcançam maior sucesso, quando o fisioterapeuta alcança a pessoa por meio de seu (dela) corpo expressivo. Do contrário, se o paciente é esquecido e se privilegia seu corpo natural, as chances de reabilitação se reduzem e se perdem potenciais extremamente importantes na recuperação orgânica. Afinal, se fôssemos organismos nenhuma abordagem existencial ao corpo provocaria efeitos terapêuticos. No máximo, seríamos puro arco-reflexo, guiados por reações instintivas, o que está longe, muito longe de ser a única possibilidade do corpo. Com essas considerações iniciais espero poder contribuir, primeiro com as produções de Vanusa, que no próximo trabalho abordará mais uma questão relativa ao corpo da/na fisioterapia; e depois, contribuir com os colegas psicólogos que se dedicam a pesquisar as questões ligadas à corporalidade. De nossa parte entendemos que os cuidados com a saúde corporal, e sua conseqüente escalada para a saúde existencial,[ix] dependem em grande medida de um efeito inusitado e poderoso – o efeito discursivo. Isso, por enquanto, pode ser traduzido como aquele efeito que se sobrepõe aos cuidados técnicos e que se alinha com as noções de acolhimento, presença consistente do médico, boa interpretação da angústia frente à dor e desamparo causados pelos acidentes existenciais. Esse amparo, no instante mesmo da emergência médica – fisioterápica aqui, mas, que bem pode ser extrapolado para as outras medicinas – rivaliza com as intervenções técnicas. Isso fica bem claro em certas expressões, que podemos excertar de conversas com pacientes de fisioterapia, mas para privar dessas observações, teremos de esperar o próximo trabalho nesta sessão. iNão uso o termo “psicologia existencial”, nem “psicoterapia existencial” por serem inadequados para se referir ao objeto de análise de uma análise existencial (terapia existencial). Uma existencianálise não aceita a idéia de um sujeito psicológico substancial, uma personalidade ou uma psique que possa vir a ser analisada como um objeto de terapia. O objeto de análise de uma existencianálise é a existência e não um ser separado do mundo; seu objeto é um ser que é-sendo-mundo. Dentre as várias implicações desse deslocamento do sujeito está a idéia de que este não vive no mundo, como se fosse uma força que decide estar ou não no mundo; isso aponta para um conceito de sujeito que se confunde com o mundo, é constituído de mundo. iiO projeto trata de investigar o corpo como discurso encarnado dentro do programa de pós-graduação em linguística (Análise de discurso). Também faço parte de uma equipe de pesquisa (UNIVÁS), que investiga o mal estar contemporâneo na mídia e corporeidade. iii Chamando atenção para esse corpo indefinido Le Breton diz: […] “o corpo é escaneado, purificado, gerado, remanejado, renaturalizado, artificializado, recodificado geneticamente, decomposto e reconstruído ou eliminado, estigmatizado em nome do grande ‘espírito’ ou do gene ‘ruim’. A sua fragmentação é conseqüência do sujeito. O corpo aparece hoje como o maior desafio político, ele é o analisador fundamental das nossas sociedades contemporâneas” (Le Breton, DAVID L’adieu au corps, Paris, Editions Métailié, 1999, 230 pp. Citado por Stéphane Rémy Malysse no artigo Além do corpo: a carne como ficção cientifica – REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2000, V. 43 nº 2). ivNão queremos dizer, com isso, que o corpo natural não possa passar por simbolização e historicidade, mas de jeito nenhum chega a constituir o cerne mesmo da produção sociológica – apenas se finca como a materialidade do corpo. Isso não se resolve em rodapé, pedindo outra elaboração subsequente. vJean-Paul Sartre em O ser e o nada. viDescartes: “O corpo de um homem vivo difere tanto do corpo de um homem morto quanto um relógio ou outro autômato (por exemplo uma máquina que se mova sozinha) que está carregado e contém em si o princípio corpóreo dos movimentos para os quais foi projetado, juntamente com todos os requisitos para agir, difere do mesmo relógio ou da mesma máquina quando estes estão avariados ou quando o princípio de seu movimento deixa de agir”. viiMaurice Merleau-Ponty Fenomenologia da percepção. viiiLeia, neste site, para ampliar a idéia de corpo discursivo, o texto Tatuagem (Levi Leonel de Souza). ixTema a ser desenvolvido brevemente. Trata-se de uma saúde que não está atrelada necessariamente à perfeição estética ou função física impecável.