Anedota do ano primeiro d.C., do ano de 2010 e da contagem regressiva do tempo


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Anedota sobre o ano 1º d.C., o 2010 e a contagem regressiva do tempo:
 
    Se com o Cristo nasceu a sociedade de consumo, então esse Cristo não teria sido presenteado com três, mas com quatro arquinhas: incenso, mirra e ouro, sem dúvida, e, por último: pandora.
    Nesses dias de natal, os repórteres não vão a Belém, mas a Nova Iorque.
    O repórter da televisão visita a fábrica de brinquedos “Estrela”, para falar de sua ressurreição: a alta dos produtos chineses, ele diz, quase levou a fábrica à falência. Hoje, com a inovação de seus produtos mais clássicos, a Estrela coroa vitoriosamente a sua volta ao mercado. A novidade é o “banco imobiliário sustentável”, feito de material reciclado. As propriedades imobiliárias foram substituídas por canaviais e áreas de preservação ambiental, e o dinheiro virou uma inexplicável materialização em cédula daquilo que por si só carece de explicação ambiental: a comercialização de créditos de carbono.
    A prova de que o “banco imobiliário sustentável” não constituirá uma geração melhor de crianças e adultos é, a despeito de terem sido alterados os seus conteúdos, ter sido preservada a forma do jogo: o seu desenvolvimento sustentável não deixa de ter emprestada da predação a sua naturalidade. Com isso, o irmão mais velho usará da sinestésica combinação de créditos de carbono, invés de o habitual revolver, para roubar os mesmos doces do irmão mais novo.
    O novo brinquedo apenas revela o quão perverso continua sendo o jogo por detrás dessa nova arma. Pois, se a forma continua sendo a mesma, por que dar novos nomes? Não seria no fundo essa a essência, politicamente falando, de todo o vocabulário ambientalmente correto? Indulta a relativa e psicológica parcela de culpa do indivíduo: separar o plástico do papel é uma missão possível, mas não é toda a missão – por isso ela é possível. O ato ambientalmente correto é envolto de papel simbólico; ele pode ser crítico em relação à prescrição dos costumes, desde que não provenha da simples obediência à educação tal qual é dada à nova geração e que transforma em meramente mecânicos todos os gestos dessa geração. Cumpre fazer objeto de crítica mesmo aquilo que é correto.
    A correção ambiental é estrategicamente confundida com a ação política quando, cumprido o dever de separar um lixo do outro, por um acaso despolitiza o indivíduo que não tem deveres fora desse. O “desenvolvimento sustentável” não propõe uma reestruturação social e, invés de contestar a sociedade de consumo, produz novos bens de consumo e, invés de contestar as formas governamentais, produz novos mas idênticos candidatos a governo. O pacto que faz com o modelo social não é uma concessão feita em benefício de uma implementação menos conflituosa, pois não foi uma correção na ideologia tal como surgiu: essa ideologia teria nascido exatamente do temor de que o modelo social, que é insustentavelmente conflituoso em si mesmo, fosse perdido.
    De fato, a falsidade do “desenvolvimento sustentável” está em seu termo contradicto. Pode ocorrer entretanto que uma boa idéia ou uma boa alma possam ser ludibriados por aqueles que correm em busca da “alma do negócio”. Seriam coincidentes a vitoriosa reaparição da Estrela no mercado e o seu novo alinhamento ideológico? Se esses que a seguem encapuzados, inidentificáveis reis, provarem que são magos, depois que levantarem vôo no tapete, restará para os seus súditos conviver com todo o lixo que restou ali embaixo.
 
O que não dizer aos pais da noiva:
 
    Rebelado contra a predileção pelo de sempre, busco, dessa vez, o desjejum do outro lado do mercado, onde encontro os muito abandonados iogurtes, de cuja existência eu havia me esquecido há vários anos. Estão um pouco diferentes, a começar pelo conteúdo, que mudou de cor, e a terminar pelas embalagens, em forma de pequenas gotas: são, de fato, pequeninas e aeróbicas. Um doce é um bom complemento para a o paladar rebelado, que sempre preferiu o salgado, senão o amargo. Entretanto, o paladar apenas vinha obedecendo à predisposição espiritual: a frívola visão do lixo mal-recolhido pelos meus vizinhos, com mais potezinhos e saquinhos, me trouxe de volta a idéia de que, habituando-me à amargura generalizada, entretanto eduquei-me bem contra a predileção generalizada: o cinismo. Não está em cada um de nossos produtos a cabeça imolada, evitada pelos vegetarianos, e que às vezes é a cabeça humana? Lembro-me de onde conheço esses potezinhos: de uma tabela. “O seu tempo de degradação é de 1000 anos”… Sobreviverá, claro, mais que a maior parte de nossas obras de arte: afinal um potezinho em forma de gota é, também, resultado de engenho e de gênio.
    Mas o que há de conquista no mundo das embalagens não está exatamente na sua característica não-degradável? Não era da caixa de frutas que precisávamos, para ter certeza de que o invólucro não apodreceria tão cedo quanto o seu conteúdo?
    Embalagens maiores viriam bem a calhar, quem sabe, ou retornáveis, como as da cerveja (O que não deixaria de ser visto como um retrocesso: o alimento industrial está envolvido de uma tranqüilidade desinfetada; sua neutralidade é sua limpeza e sua falta de tempero é a brancura do modelo
    Não seria mais seguro aquilo tudo o que é “contra a vida”? Não seria “pela vida” a caridade do orgânico para com o micro-organismo? A população bacteriana a tudo povoa, até a tampa de rosquear do bactericida. Tudo é cárie, fora do tubo da pasta de dente. O suco em pó, no lugar do suco de fruta, seria o alimento ideal, não fôssemos, dentre os animais, os únicos capazes de idealizá-lo)
 
    O pai: Você não quer açúcar?

    O noivo: Não, obrigado. O que me agrada no iogurte é não mais que isso nele que há de rançoso, de estragado. Se pudermos considerar que sejam classes de um refinamento, quando um alimento pode ser salgado, granulado, defumado, ou estragado, então pode apresentar-se à frente, como a mais interessante dessas classes, a degradação de um produto. Vide o Roquefort. A força de trabalho não é apenas direcionada para a preservação da vida, pela preservação da sociedade, mas, alegoricamente, não exclui a direção em seu sentido mais contraditório. Mas, por que vocês me olham assim? Haveria algo de grotesco ou de socialmente reprovável em criar uma predileção pelo estilo degenerado – o que já foi feito na arte, mas talvez não ousado, socialmente, no alimento?

 

 

About the author

andré nogueira

André Nogueira: nascido em 1987 na cidade de Herdecke, Alemanha Ocidental. Registrado brasileiro no Consulado em Munique. No Brasil desde 1991, vive atualmente na cidade de Campinas (SP). Graduação em Filosofia pela UNICAMP.