Comunicação e Política By Augusto Maurer / Share 0 Tweet Sobre políticos, fraldas e a obsolescência de um sistema eleitoral fundado sobre o marketing político para a escolha dos mandatários Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos e tempos pelo mesmo motivo. Atribuída a Eça de Queiroz, a máxima acima traduz impecavelmente certo sentimento que se dissemina rapidamente, mormente em tempos de internet, a cada novo pleito eleitoral que se aproxima, se constituindo mesmo como movimento sob o lema não reeleja ninguém. Penso, no entanto, que o buraco seja mais embaixo – mais precisamente na essência de um sistema fundamentado na escolha pela sociedade, largamente influenciada por publicidade eleitoral, de uma quantidade excessiva de representantes, regiamente remunerados, durante mandatos absurdamente longos, pela responsabilidade de levantar, regular e realizar o que seria, supostamente, o anseio comum. Há uma certa dose de arrogância e um enorme bocado de resignação conformista na aceitação tácita e na perpetuação de um estado de coisas, já naturalizado conquanto ainda bastante recente, que justifique e tolere a existência de uma classe de políticos profissionais alternando-se em posições públicas exclusivamente em resultado de eleições orientadas por campanhas publicitárias. Para que bem se dimensione, todavia, a ordem de grandeza da desqualificação da política em virtude de sua relação promíscua, amoral e clientelista com o marketing, é preciso, antes, decifrar alguns mitos por trás da naturalização da idéia da propaganda como via de acesso à qualidade em qualquer esfera. Um aspecto problemático de como a propaganda é hegemonicamente percebida reside na dupla natureza pela qual é socialmente reconhecida e tolerada. Isto significa que, mesmo cientes de que hábeis profissionais de marketing se dedicam permanentemente a querer nos fazer acreditar que os produtos e serviços que apregoam sejam melhores ou mais necessários do que realmente são, ainda assim não hesitamos em nos deixarmos levar ou impressionar pelo lixo publicitário insistentemente despejado sobre nossos sentidos. Neste contexto, códigos e órgãos reguladores estão aí para, em última instância, assegurar ao senso comum que se pode, sim, acreditar naquilo que é anunciado, já que algo ou alguém, nalgum plano, zela pela veracidade e imparcialidade do discurso que engolimos. Se esta dualidade escancarada não é suficiente para um amplo boicote social à propaganda em favor de outros modos de aquisição de informação associados à educação e à pesquisa, é por que a idéia do marketing virtuoso está profunda e indissoluvelmente arraigada a uma concepção de mundo centrada no consumo, na qual se atribui mais importância às trocas materiais que dominam o cotidiano do que, propriamente, aos vínculos inter pessoais. Antes, ainda, de contemplarmos o absurdo em que se constitui a propaganda eleitoral, não é demasiado sublinhar que não é considerado propaganda todo discurso cuja mídia de suporte faculte ao destinatário, de modo claro, simples e facilitado, o direito e a ampla visibilidade de resposta; bem como que os investimentos necessários à criação, produção e veiculação de mensagens que, via de regra, por meio de padrões de ênfase e omissão, enaltecem atributos deste ou daquele produto perante os de outros em relação aos quais talvez os primeiros não se comparassem tão favoravelmente na ausência do discurso propagandístico, fazem da própria atividade publicitária um campo tremendamente antiecológico, uma vez que enormes recursos humanos, físicos e energéticos que seriam, de outra forma, poupados, com notável repercussão no valor de mercado e no custo ambiental dos produtos, se toda publicidade fosse abolida e usuários passassem, então, a tomar decisões exclusivamente a partir de informações confiáveis disponibilizadas em bases de dados e redes sociais. Posto isto, já se pode falar de política. Não, ainda, todavia, do contexto atual. Cabe, outrossim, lembrar que, tanto quanto noutros campos do discurso humano tais como a filosofia, a arte ou a ciência, a política existe desde épocas imemoriais (com a palavra os historiadores) muito mais como terreno dialógico para onde convergem e no qual colidem, se assimilam e se atualizam anseios, crenças, interesses, necessidades – enfim, tudo o que diga do homem enquanto grupo – do que, propriamente, de um mercado onde se negociem idéias segundo a conveniência de cada um. Sob este ângulo, a profissionalização e especialização da vida pública é um fenômeno, conquanto largamente naturalizado, ainda bastante recente. Ora, tal situação se afigura como um tremendo contra-senso histórico justo no momento em que novas redes e configurações dialógicas permitem leituras cada vez mais frequentes, profundas e abrangentes de anseios sociais. Como, todavia, já falei disto em Políticos demais, ou Para uma verdadeira reforma política e Políticos demais II, ou Pela desprofissionalização da vida pública, chamo, por hora, a atenção para o fato preocupantemente banalizado de que se, por um lado, podemos modificar, em pouco tempo e com prejuízos razoavelmente limitados, opções de consumo que se afigurem, em retrospecto, como desastrosas ou meramente insatisfatórias, já não dispomos, em nosso sistema político-eleitoral, da mesma agilidade e flexibilidade em se tratando da interrupção de mandatos políticos decepcionantes. Face a isto, é, pois, justo reivindicar um sistema que possibilite a escolha de mandatários sem recurso a qualquer publicidade monológica, no qual eleitores busquem por si próprios, tanto em bases amplas de dados certificados pela justiça eleitoral como em debates livres em plataformas que não imponham restrições a discursos em virtude de cacifes partidários nem à ampla participação social, os elementos necessários para fundamentar suas escolhas. * * * Enquanto este ensaio foi gestado, ocorrências bizarras pipocaram em lugares distantes entre si, tais como: a tentativa de censura à circulação de idéias de oposição ao governo iraniano na internet; os ataques cibernéticos promovidos pelo governo da Da Coréia contra a face digital de corporações emblemáticas do capital internacional; e a mobilização no congresso brasileiro pela imposição institucional de medidas restritivas à liberdade de manifestação política na internet. Note-se que, conquanto emergentes em distintos contextos políticos (dois regimes totalitários – um religioso e outro comunista – e uma democracia), as três situações evidenciam uma mesma espécie de espernear de interesses instalados no poder ante inexoráveis avanços no uso político da vocação democrática por excelência da rede mundial.