Cultura saturada By João Grando / Share 0 Tweet Há uma sensível diferença entre os vinhos, mas é a sensibilidade que faz o violino tocar. Uma vez, à época que começava a me interessar mais criticamente por cinema (ou que a análise de filme passou a necessitar ser mais que uma mera bifurcação “filmão/ bomba”), ouvi dizer de Cidadão Kane um exemplo de filme moderno e Veludo Azul de um pós-moderno. Se ambos se aproximam por serem raros casos de títulos traduzidos literalmente do original, instintivamente eu notava certa oposição formal (e mais que isso) entre eles, porém precisei de um conhecimento teórico sobre a caracterização dos termos para notar em Blue Velvet a sistemática de apropriação e pastiche da pop art e afins e assim perceber nele uma destinação a mentes poluídas, mentes já poluídas pelo turbilhão de imagens do século: só se pode ser original se se levar ao extremo a citação ao que já há, porque o que já há é muito (e o extremo da citação é o plágio assumido, a recontextualização, o uso intencional dos clichês para explorar o imaginário comum). E graças ao conteúdo teórico que pude corroborar o limite estabelecido pelos 60’s relativamente ao século XX (assim como do século XX em relação ao milênio): o moderno substitui o antigo, o pós-moderno substitui o moderno e embora aquele esteja neste (noção já embutida na palavra), são antônimos: o moderno já é passado. Como disse, percebera isso instintivamente. Assim como instintivamente eu via alguma coisa errada na Arial em caixa alta quando queria usá-la para fazer cartazes. E a coisa errada da Arial é que ela não é a Helvética. Ninguém (ninguém = maioria) vê (ou se importa com) a diferença entre Helvética e Arial. A Helvética, para além de ser vastamente utilizada (no seu teclado muito provavelmente as teclas são indicadas por ela) é – também por esta funcionalidade popular – um índice de modernidade: chega a ser cultuada. O é por ser o ápice da busca de uma simplicidade funcional, um conceito moderno. Ápice porque, embora deva muito a quem lhe precedeu (como a fonte Akzidenz-Grotesk), atingiu o ponto de aliar aceitação crítica (especialista) à popularidade: como Picasso relativamente a Cézzane e, até mesmo, Matisse, ou os Beatles em relação aos dinossauros do rock and roll dos 50’s. A Microsoft, que usa a Helvética em seu logo, a fim de não pagar licença criou uma fonte própria para substituí-la e a incorporou em seu pacote Office (Word, Excel, PowerPoint) à quase sua imagem e semelhança: e assim nasceu a Arial. O r maiúsculo da Arial tem a perninha diferente do da Helvética. O a minúsculo é diferente. O g maiúsculo é também diferente. E, mais que isso, no conjunto das letras, a Helvética parece ter mais tectonicidade, uma vez que as simplificações da Arial foram suficientemente tímidas para não a transformar nalguma coisa assumidamente leve como a Trebuchet MS. Pois bem: via algo estranho na Arial, mas agora sei bem o que é. Pois adquiri o conhecimento a respeito: a crítica tem também sua técnica. E com esta técnica que se percebe a importância da obra Campbell’s Tomato Soup, de Andy Wharol, copiada identicamente do produto original (dizendo assim “a vida é igual à arte”, “não existe autor”, “meu olhar é que é genial, não a obra” entre outras tantas coisas (ou mesmo a ação de não as dizer) com um gesto simples): obra tão ou mais poderosa que a fonte de Duchamp (embora fiquemos com o “tão”, pois Duchamp, ao lado de carinhas como os já anteriormente citados Picasso, Matisse e Cézzane, talvez ocupe o topo de uma hierarquia, ao qual conseguintemente resta aos demais apenas (tentar) alcançar, sem jamais ultrapassar, dada a vantagem que a história dá àqueles que se aventuraram na missão de descobrir, iluminar, e que podem carregar o passado com o orgulho de um recorte de um presente alterado, de um futuro parido). É com esta técnica crítica que se percebe a importância do trabalho de um Braque no cubismo, muito ofuscado num plano não erudito pela celebridade de seu parceiro famosão o pela terceira vez citado Picasso. E com esta técnica adquire-se segurança para voar acima dos segundos cadernos e questionar distinções, cinco estrelas, bonequinhos em pé aplaudindo n’O Globo. Falando nisso, peguemos o cinema para exemplificar: há muitas maracutaias nesta área: não é o caso d’O Sexto Dia ou 300 (de Esparta), filmes feitos deliberadamente para divertir (e que, dentro de um contexto maior, têm uma significância por representarem aquele cinema-entretenimento (quando uma palavra não exclui a outra do outro lado do hífen), que vale por duas horas – você não vai assistir a um espetáculo do Ary Toledo com outro objetivo (ainda que não venha a se cumprir) que não o de ter o abdômen doído de tanto rir). E a superficialidade tem grande valor (especialmente quando a rapidez é uma obrigação). O problema então é com os Benjamin Button da vida, Réquiem para um Sonho – acreditem-me, estes são filmes que nos enganam: são Ariais (o direito adquirido de se usar como bem entender não é tirado de ninguém, então chorar ao assistir Em Busca da Terra do Nunca não é problema algum, experimentar uma formação de beleza baseada na feiúra, encantar-se com uma forma alternativa de construção ao assistir Confissões de uma Mente Perigosa (e achar que por causa deste filme Charlie Kaufman é genial, quando este foi seu roteiro mais (ou o único) prejudicado pelo diretor) não é problema nenhum – são todos sentimentos honestos – se você quiser usar Arial para escrever algum recado no seu escritório ou até mesmo fazer um cartaz, tudo bem, mas jamais fale dela como índice de excelência de design, porque isso pertence à Helvética. Este é o ponto. Prêmios como o Oscar têm uma lógica própria, é quase como uma piada interna, quase como o status de um funcionário numa empresa, porquanto não devem servir de distinção num nível mundial: devem ser discutidos, mas dentro da lógica do prêmio (o verbo vencer e o adjetivo melhor não combinam com as artes). E daí o Health Ledger faz o papel do Coringa e todo mundo sai da sala dizendo “o Oscar é dele”, sendo que a maioria esmagadora dos outros concorrentes (as atuações e não os atores) nem foram conhecidas. Como designar um melhor sem conhecer os piores que ele? É fundamental conhecer para criticar, ou ao menos ser suficientemente honesto para apresentar as características da opinião (se é pessoal, leiga etc.) O outro lado da moeda (porque a maioria das coisas são moedas, têm seu outro lado, e mesmo quando não são, como bolas, podemos supor um lado de dentro, podemos supor um contrário) é aquele pessoal que após descobrir a Helvética a usa como ferramenta para aumentar um status, exibindo seu conhecimento sem usá-lo, desprezando tudo que não seja suficientemente hermético para distingui-lo (isso seria como o festival de Cannes, ou como quem deifica o também anteriormente citado Andy Wharol sem supor que alguém venha a se comparar a ele, quando era justamente isso que ele, na teoria, pois na prática ele entrou no sistema (quase, mas não tão radical, como o Chê estampando num biquíni de grife) condenava). Em verdade, esta moeda e seu outro lado está mais para o outro lado do exemplo, pois o problema é o mesmo: o uso dos adjetivos. “Inteligente”, por exemplo: dizem “CQC é humor inteligente”, e aí carimbam isso no CQC e as pessoas assistem ao programa sem o peso na consciência (ou no status pseudo-intelectual) de passarem por abobados, como seria o caso de quem vê o Pânico, que, opinião pessoal, é de grande inteligência ao assumir a selvageria do humor e assim buscar um riso primitivo, sem abrir mão de pequenos jogos ao aproximar o ridículo dos valores contemporâneos, ao pôr gostosonas fazendo um papel pejorativo da imagem de si mesmas. É também o caso de quando chamam refinada a letra de Zeca Baleiro, é o caso de quando utilizam deliberadamente o mesmo adjetivo “inteligente” relativamente ao programa Saia Justa (que eu nem sei se está no ar ainda), da maioria das minisséries da Globo, dos “brilhantes” sem grandes exigências: são láureas à mediocridade, a uma mediocridade estabelecida de conhecimento, que esquece da criatividade para se satisfazer com qualquer coisa que não seja débil (aliás, abordei um pouco disso na minha coluna anterior, reforçando que mediocridade tomou um tom pejorativo, mas a conotação que utilizo é anterior a esta mácula, ou seja, simplesmente significa médio). E os exemplos dados ainda são exemplos fáceis, pois deveríamos tirar alguns pedestais por aí (pensemos que Niemeyer, por exemplo, a despeito de todo o respeito e honra que merece, tem muitos furos funcionais para tapar em uma obra que ganhou um status quase unânime por fazer uma releitura de um Brasil primitivo (sempre há um eco de Oswald nisso, que faz das coisas sob o tal eco quase intocáveis num contexto erudito (samba, bossa nova, tropicália etc.)). Há que se reconhecer a inteligência de um Tiririca, de um Sérgio Mallandro. De um Fábio Júnior. Aliás, ótimo exemplo: afinal as mulheres desmaiam no seu espetáculo, e as mulheres certamente sabem ser críticas em se tratando de desmaio. É uma questão de sutileza. Uma sutileza que toca o lugar onde acontece o prazer de qualquer manifestação: a recepção individual. Ela vem perdendo espaço para a exteriorização desta recepção, que se confunde com as outras já exteriorizadas – grosso modo: arrotar caviar (nunca vi nem comi só ouço falar) sem sentir gosto de nada. Ou o caso da sutileza é ainda mais grave e ela, talvez devido a sua essência silenciosa, não sirva para o nosso tempo, como bem observa Luiz Carlos de Oliveira Jr., abordando o assunto sob a ótica da crítica cinematográfica. E novamente o problema não é na massa, na maioria: o caso do Joshua Bell fora de contexto tocando para uma platéia de desinteressados não serve de exemplo: o valor intrínseco na arte (título do e-mail pelo qual soube desta história) sempre foi hermético: os problemas (repito e faço questão) são dois: 1) quando este pessoalzinho que não percebe as sutilezas (repito e faço questão) de modo natural usa um conjunto de referências e saberes para encher a boca como se as percebesse e colabora assim somente para martelar preconceitos (as listas da revista Bravo não se dirigem assumidamente a um público leigo, tampouco agradam a quem realmente entende dos assuntos abordados: situam-se assim num meio do caminho entre a crítica e a divulgação, fossilizando um gosto que é elitista ao mesmo tempo que não é suficientemente exigente, colaborando tão somente para a mesmice (o mesmo caso de um livro bonitinho sendo vendido por aí com o título 1.000 filmes para assistir antes de morrer); 2) falar sem saber (repito-me de outros textos aqui também, posto que calha citar a facilmente traduzível frase de Leonardo da Vinci “Nessuna cosa si può amare nè odiare, se prima non si há cognition de quella”). E falando em perceber se pode perceber isso em qualquer coisa, até na mais popular delas: o futebol que a torcida quer é ineficaz, quando não impraticável. Aquela velha balela de “até eu fazia”, “o cara ganha para isso e não consegue pôr a bola no ângulo na falta”, demonstram a simplificação que se faz de algo muito mais difícil, perdendo-se assim a oportunidade de deleitar-se com os detalhes próprios de cada atividade, de cada coisa (muitos 0 – 0 são verdadeiros jogaços, aulas de estratégia e futebol). E já que estamos no popular, isso lembra-me a expressão “comigo é no popular”, então lá vai uma última metáfora já repetitiva, mas que vale para carimbar a idéia: há uma estagiária lá na repartição que tem a fama de ir à luta, a ponto de dizerem “ele sai dando helicóptero da Chun-Li em quem aparecer”. E é por aí mesmo, “dando”, “pernas abertas”, esta conotação sim. Mal nenhum. Mas ela faz qualquer um parecer F. Júnior. E ainda que receie às vezes ser sintoma da era dos quinze minutos (eu não podia fugir do clichê de deixar esta medida e Andy Wharol no mesmo texto), da carência de bons leitores, me repleta a noção que sempre vivencio da recepção individual (não é à toa que tem gente por aí que sabe apreciar experimentos, um bom Bach, que sabe dar uma boas risadas com bobagens, que entende o que cineastas como Shyamalan propõe, que se divertem ouvindo Polvo).A sutileza segue silenciosa, ou murmurando, para quem a quiser: a diferença entre os vinhos é sensível, mas é a sensibilidade que faz um violino tocar. Texto complementar: A arte dá nos nervos joao~grando [blog] [@joaogrando]