Se daqui a mil anos


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Meus amigos daqui da Suiça não sabem o que é pobreza. Nunca viram. Tem uma dificuldade enorme de imaginar o que significa fome num contexto que não seja "tô com fome, vamos sair pra comer pizza?". Eles já viram na TV, de repente até na rua, e sinceramente acho que se esforçam pra ter a sensibilidade necessária. Mas não tem e não sabem.

Também não sabem o que é falta de educação, analfabetismo, exclusão social, preconceito de classe, nenhuma dessas palavras feias que teimam em denegrir a boa imagem da nossa nação. Outro dia eu disse pra eles que uma pessoa que trabalha ganhando menos de 1 dólar por dia está numa situação de escravidão, pois tem duas opções: morrer de fome, ou trabalhar 16h por dia pra ter agua semi-potável e eventualmente qualquer mínimo de alimentação. E essas não eram opções melhores do que as que um escravo tinha, e que ninguém nunca iria oferecer um trabalho melhor pra essa pessoa, porque a tal da mais-valia funciona, etc… (eles também nunca estudaram Marx no colégio e não sabem definir o que é socialismo nem capitalismo, a não ser a definição Fox News). Nisso, um amigo me interrompe: mas se é assim, ele pode abrir o seu próprio negócio, a não ser que exista um big-government que impeça ele de abrir um negócio. Ele pode abrir o seu próprio negócio. É esse o nível do desconhecimento, minha gente.

Muitas vezes nossas conversas acabam caindo no argumento da grande falácia natural. O argumento da falácia natural funciona assim: ao ser apresentado a qualquer grande injustiça causada pela sociedade o sujeito responde: olha, isso não tem nada a ver com o sistema, a natureza é que assim. Não é possível que todos tenham tudo e essa é a beleza do livre mercado, porque ele não deixa você artificialmente fingir que nós podemos ter o que na prática não podemos.

Antigamente, a minha resposta à grande falácia natural era sair gesticulando como o Zizek e gritando: é, faz todo sentido mesmo! Porque se eu virar pra você agora e dizer que a gente tinha que tentar colonizar Marte, montar um elevador pra Lua, ou construir uma árvore que dá chocolate você vai me dizer que é só uma questão de tempo e de esforço, porque o intelecto humano é capaz de qualquer coisa e que muito do que temos hoje já foi considerado impossível. Mas no momento em que eu falo pra você que nós temos que acabar com a pobreza e a desigualdade, você me diz que não há nada a fazer porque isso é impossível e está muito além da capacidade humana. Então ok.

Gosto muito desse argumento. Mas outro dia, meio sem querer, acabei dizendo outra coisa no lugar. E queria compartilhar com vocês o que eu disse.

A minha nova resposta pra grande falácia natural é: amigo, eu venho de um lugar chamado Brasil. Um lugar que tinha quase 50 milhões de pessoas vivendo em situação de miséria absoluta e hoje tem menos de 13. E de quebra, durante o mesmo período, fizemos o PIB crescer mais que 5% ao ano, com gente comprando geladeira e fogão, sabe? Não teve bolo pra dividir, não teve nada de natural. O que tem é que quando o pior de nós melhora, todos melhoramos. O mundo não é o que é, o mundo é o que a gente faz dele. E dá pra fazer tanta coisa.

E foi aí que eu percebi o que eu percebi e corri pro computador pra escrever o que estou escrevendo.

A saída de 30 milhões de pessoas da miséria foi e é de uma importância social e humana gigantesca. E creio que com efeitos que se propagarão por décadas, alterando profundamente as vidas das pessoas do nosso país. Mas isso eu já sabia. O que eu percebi é que essa mudança é muito mais que isso.

Porque ela é também a idéia. É o argumento de que podemos fazer mais pelo mundo e que não estamos fatalmente presos dentro dessa lógica umbiguista-cínico-mercadológica. Que apesar de não termos as respostas e de ser preciso humildade pra reconhecer que as decisões nunca são óbvias, não podemos descartar as perguntas. A história não acabou. O que o Brasil fez não foi só um avanço humano, mas de certa forma foi também um avanço histórico.

Daqui a mil anos, quando nada mais for como é, acho que alguém vai lembrar disso. Durante uma aula maçante sobre história do século 21, eles vão aprender sobre o que a gente discutia e se perguntar "mas eles não viam o que ia acontecer?". E alguém vai perceber que a gente não tinha como saber, não estava claro, mas mesmo assim a gente intuía, hesitava, e devagarzinho fomos descobrindo. E acho que vai estar lá. Eu sei que vai estar lá. Talvez como um micro ponto, uma nota de rodapé, um "é por isso que vale a pena vir na aula desse cara, porque isso não tem no livro". Mas vai estar lá que a gente fez alguma coisa diferente. Que não era tudo igual e que a gente tentou e demos uma dentro pra história, sabe?

E alguém vai levantar a mão e perguntar "mas psor, isso também cai na prova?". Porque a gente tá começando a resolver a pobreza, mas ainda tem muito chão pra resolver a educação.

Fernando Serboncini é engenheiro, trabalha no Google e mora em Zurique, na Suíça. É fascinado pelas coisas. Nasceu faz menos tempo do que parece. E erra muito. Seu site: http://fserb.com.br/

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Fernando Serboncini