Amizades assimétricas em tempos de copos vazios


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“Somos ambos “intocáveis” em diversos aspectos. (…) Ele é insuportável, vaidoso, orgulhoso, brutal, inconstante, humano. Sem ele, eu estaria morto por decomposição. Abdel cuidou de mim sem cessar, como se eu fosse um bebê de colo. Atento ao menor sinal, presente em todas as minhas ausências, ele me libertou quando fiquei preso, me protegeu quando eu estava fraco. Ele me fez rir quando eu não aguentava mais. Ele é meu diabo guardião”  (Pozzo, P. O Segundo Suspiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p.125)

Mais do que uma obra de cárater intimista, esse livro que inspirou o filme “Intocáveis” (2012), não limita amizades as diversidades de estilos e pontos de vista, mas reconhece outras formas de amizade, outros tipos de relação, principalmente, assimétricas. Freia a tese de que os amigos do peito geralmente são parecidos conosco, que estão inseridos no mesmo paradigma e gostam das mesmas coisas. No contexto de imagens diferentes,o protagonista Pozzo, branco e milionário, é apresentado à tragédia pessoal de delinquência de Abdel, e, sincronicamente,  Abdel, negro de origem árabe da periferia de Paris, é apresentado a depressão, solidão e deficiência física de Pozzo.

Dito de outra forma, o embrutecimento os une como reflexo de um espelho plano. O acaso permite a interface de excluídos em mundos diferentes. O acaso acolhe duas vidas dissociadas.  Sem a sombra na parede, descobrem-se acompanhados, mesmo deslocados. Saem do caminho retilíneo, do que se combina e do apego pelo que os cerca.

Sabe-se que no período do homo sapiens, a amizade era compreendida como necessidade, troca de favores e como essencial para sobrevivência entre rivais. Não se pedia nota fiscal, nem garantia. Não existia o esgotamento emocional.

Na contemporaneidade, ao conquistarmos amigos, buscamos  mais prazer do que à sobrevivência. Pelo menos, nas relações integras e não falaciosas, precisamos estar próximos das pessoas para a alimentação do nosso cérebro com a liberação de uma substância chamada ocitocina. No passado, segundo uma reportagem da Revista Super Interessante,  a ocitocina permitia apenas a espécie se reproduzir com sucesso, mas hoje é o efeito narcótico das amizades profundas. Hoje encontramos tanto a sazonalidade quanto a intimidade imediata que exige ubiquidade.

Gosto da possibilidade de conquistar novas amizades na mesma vida, mas não acredito quando se iniciam como um copo cheio, pois o fim pode ser um trasbordamento ou apenas pedacinhos de vidros. Confesso que já cometi erros por encher o copo de uma única maneira. Hoje, entendo os mililitros emocionais da amizade. Aprecio a tese de que quando o outro é muito parecido com você, a relação pode ser um tubo de ensaio instável e desfocado com clorato de potássio. E, em um olhar Darwiniano, defendo amizades mais adaptáveis.

Durante a minha infância e adolescência, morei em uma única rua e estudei, também, em um único colégio.  Fui criada em uma família com intimidade entre primos. Em todo o tempo, existiam os diferentes, unidos, apenas, pelos espaços ou laços sanguíneos. Mas, não existiam interesses que não fossem apenas jogos, brincadeiras ou conversas bobas. A amizade nos impedia de seguir além de nossos limites espaciais, os copos eram, inclusive, trocados.

Eram amizades que se encaixavam uma atrás da outra. Era tempo sem internet, celular e redes sociais. E, sem inúmeros canais, contentávamos em assistir, aos domingos, os Trapalhões. Não havia risos forçados e nem atribuíamos as nossas decepções às amizades não correspondidas, aliás, não nos preocupávamos com as BFF (Best Friend Forever). Podia-se discordar para continuar no time. O grau de expectativa não era alto.

Raras vezes só enxergávamos o que era melhor para nós mesmo.

Estávamos lá nos nascimentos, dores, mortes prematuras, carnavais, feriados e férias que simplesmente eram repetitivos, mas nos aproximavam.  Existiam entraves, mas nunca o mar chocava-se contra a popa descoberta do barco, pois antes de desmoronar sobre o convés, prevalecia-se a intimidade. Ou mesmo a paciência.

Havia rejeição, indiferença, incompreensão por sermos diferentes, mas não significava a definição de grupos exclusivos. Era normal discutimos e termos divergências, mas, no outro dia, estávamos sem nenhum sinal de amizade-bomba. Havia o ombro para chorar a qualquer instante, sobrava-se tempo para ficar de bem e de mal. Era o tempo da série de figurinhas: Amar é ter um amigo fiel…..

Quando penso nesses anos dourados, independente de manobras delicadas nas passagens dos anos,  reconheço que essas amizades exerceram uma influência sobre a adulta que me tornei. Penso que reconhecer e lidar com diferenças, já era sobreviver.  Sentia vestígios de humanidade em mim, pois havia mais ocitocina no meu organismo durante a juventude, o que facilitava a criação de relações mais profundas.

Ao contrário dos iguais que encontrei nas faculdades, academias, profissões, ambientes de trabalho, condomínios, viagens e outros, em que os laços afetivos não se conservaram frente aos choques de opiniões, escolhas diferentes, intolerâncias e contratempos. E, na similitude, percebi sintonias diferentes, desejei me libertar. Compromissos e alianças se fizeram frágeis.

Existe uma expressão francesa que qualifica as diferenças como qualidade e não defeitos, denominada assim: ‘Vive la difference!”.  E, hoje,  mesmo com uma menor expectativa em novas amizades simétricas, esses componentes continuam a atuar em mim como forças motrizes. Pode ser que os íntimos da infância continuem diferentes, mas talvez possam ser as sementes do suco de maçã  frente ao delicioso abacaxi com hortelã que tomo com os iguais. Pode ser que existam copos vazios que possam ser utilizados.

Acredito que as pessoas podem chegar e ficar em nossa vida por um século ou apenas por uma estação. Em geral, se sentimos o mesmo valor do encontro de intimidade, sorrimos do passado, comemoramos o presente e sinalizamos um futuro, com um pensamento comum de certeza. E como nunca se corre uma maratona sozinho,  comemorar com copos cheios. A vida muda, as amizades mudam, aliás, nada para de mudar. Logo, existe  a possibilidade  que as amizades possam se renovar em todas as formas que decidimos, quem sabe no contra-gota do copo, mas nunca em um gole só.

E, literalmente, acreditar em José Saramago: “No coração da mina mais secreta, no interior do fruto mais distante, na vibração da nota mais discreta, no búzio mais convolto e ressoante, no silêncio mais fundo desta pausa, em que a vida se fez perenidade, procuro a tua mão, decifro a causa de querer e não crer, final,  da intimidade”.
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Luciana Santa Rita