Lovecraft (III)


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Talvez haja uma lição política em Lovecraft, uma lição que mistura psicologia e política.

Grupos hegemônicos fazem uso daqueles que consideram indignos e inferiores para executar o serviço sujo que garante que esses mesmos grupos hegemônicos permaneçam com sua mitologia de pureza e limpeza.

Conhecemos isso no Brasil: quando os militares da ditadura fizeram uso da banda podre da polícia para a caçada aos adversários do regime. O medo instala-se nos corações dos poderosos “puros”, bem como a sujeira que necessitam obliterar. A contaminação é inevitável: o oficial de alta patente suja as mãos ao acobertar a tortura perpetrada pela tigrada da polícia, e um mal-estar de acordos tácitos inconfessáveis forma um cobertor fétido que cobre a todos, sem exceção. E o medo de que aqueles considerados inferiores se rebelem, se levantem contra os antigos senhores.

Não é o que vemos em contos como Nas Montanhas da Loucura? O pavor dos Antigos com relação aos shoggoths (criaturas criadas por eles para fazer o serviço pesado) é o medo da consciência culpada, aterrorizada com a avalanche daquilo o que foi recalcado e que está por emergir. E as criaturas das quais só se falava em sussurros sobem das profundezas desconhecidas e são a danação dos Antigos. O medo do que não se nomeia. O medo do que está soterrado nas profundezas. Sem saber, Lovecraft era um freudiano, justo ele que considerava Freud “pueril”.

Seu preconceito mancha seu trabalho. Contos como O horror em Red Hook, Ele, O chamado de Cthulhu, estão conspurcados pelo seu racismo. Não é algo que fique confinado à sua biografia. Espalha-se pela sua obra. E não deixa de ser curioso, e lamentável, que um sujeito que reviu tantas de suas concepções ao longo do tempo tenha se mantido tão rígido no que tange às questões raciais. Autores contemporâneos e equivalentes a ele, ao menos na temática, não deixaram que suas obras fossem contaminadas por preconceitos da maneira como acontece com a obra de Lovecraft. Pense-se em William Sloane ou em Robert W. Chambers, por exemplo. Mesmo em Poe, que foi educado para ser um cavalheiro sulista, raramente vemos seus preconceitos vazando nos seus contos (talvez em A narrativa de Arthur Gordon Pym).

Mas, como bem percebeu Michel Houellebecq, a maior parte de seus novos leitores (ou cultuadores) chegou até ele por outra via que não a literatura. Conheceram Lovecraft através de RPGs e games eletrônicos. E, mais do que Lovecraft, conheceram a tal mitologia de Cthulhu (que, esclareça-se, Lovecraft nunca pensou como tal).

Houellebecq, fiel ao seu estilo, destaca o negativismo existencial que emana dos contos de Lovecraft: a negação da vida, diante do universo infinito que carece de sentido. Talvez ele toque nesse nervo, o nervo da nossa inquietação diante da imensidão de tudo, da cacofonia de informações que nos atordoa e que nunca cessa. Alan Moore afirma que as criaturas imaginadas por Lovecraft são menos uma forma do que uma sugestão de que são contradições insolúveis. Os paradoxos do nosso tempo em forma de criatura inconcebível.

E no século XXI, os polvos invisíveis sibilantes, se pensados na chave que Alan Moore indica, são bem menos absurdos do que eram há setenta anos atrás.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.