Desejo e vontade: uma explicação científica


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Um dos processos mais centrais do comportamento humano é o que chamamos de desejo, vontade ou motivação. Como uma Psicologia científica compreende um processo considerado tão subjetivo? Neste texto, vou tentar responder a esta pergunta (espero que a leitura dessas linhas seja tão prazerosa quanto foi escrevê-las).

“Vontade”, “desejo”, “necessidade”, “querer”, “almejar”, etc, são palavras utilizadas para descrever os motivos por que as pessoas fazem o que fazem. Em Psicologia, todos esses termos podem ser resumidos no conceito de motivação (e serão usados como sinônimos neste texto). O estudo da motivação é, encurtando, o estudo dos objetivos e necessidades das pessoas e de como seus comportamentos são direcionados a satisfazê-los. Como se pode imaginar, é um processo fundamental para a compreensão do universo humano.

Na análise do comportamento, utilizamos o termo “operações estabelecedoras” para nos referirmos ao que é comumente chamado de desejo, vontade, etc. Essa palavra diferente nos permite uma definição técnica e operacional que evita confusão com o conceito de motivação. Antes de apresentar a definição operacional de operações estabelecedoras, no entanto, vou descrever diferentes processos que esse conceito engloba.

Algumas necessidades humanas são conhecidas por todos como os mais básicos requerimentos da vida: comer, dormir, beber, respirar, fazer sexo, evitar situações aversivas, contato físico, etc. Essas necessidades fazem parte do “kit de sobrevivência” de um indivíduo (e de sua espécie). Se não sentíssemos fome, não nos alimentaríamos e morreríamos rapidamente, não tendo chance de reproduzirmos ou cuidarmos de nossos filhos. Se não dormíssemos, nosso corpo não descansaria e não poderíamos nos comportar adequadamente. Se não sentíssemos prazer sexual, possivelmente reproduziríamos menos e a espécie poderia entrar em extinção; e assim por diante. Todas essas necessidades foram modeladas por incontáveis anos de evolução da espécie e são comuns a muitos tipos de animais. São, fundamentalmente, requisitos para a manutenção da vida.

Um grupo grande de objetivos do comportamento envolve evitar ou escapar de situações aversivas. Este grupo também faz parte do nosso “kit de sobrevivência” e é tão importante para a nossa sobrevivência quanto comer e dormir. Quando estamos com muito calor, temos vontade de abrir a janela. Se estamos com dor de dente, queremos ir a um dentista. Se temos medo de escuro, precisamos acender as luzes, etc. Sentir incômodo é claramente prejudicial a uma vida de qualidade e por isso evitamos situações aversivas quase automaticamente: foi assim que a natureza nos fez.

Talvez para os humanos, e alguns outros animais, ainda deva ser somada às necessidades básicas o desejo de estar em grupo: fazer parte, conhecer os membros e ser importante para a associação. Pessoalmente acredito que uma das necessidades mais vitais dos humanos é a comunicação. Estar em grupo facilita a sobrevivência (amplia as possibilidade de obter recursos e cuidar dos filhos) e possivelmente a evolução nos moldou também a ter esse desejo. Cuidar e ser cuidado, amar e ser amado, tocar e ser tocado, são demonstrações de que podemos confiar em que está próximo de nós e isso faz com que nos sintamos seguros. Por sua vez, ter uma posição de destaque ajuda a atrair o sexo desejado e a poder tomar decisões importantes. De forma semelhante, comunicar-se e conhecer o grupo é fundamental para expressarmos nossas necessidades e opiniões e para podermos prever os comportamentos individuais de cada membro da associação e nos preparamos para lidar com eventuais problemas.

O comportamento humano, no entanto, não ocorre por conta apenas dessas necessidades mais centrais. É verdade que existem muitos outros processos e objetos que nos fazem desejar e exigem satisfação. No entanto, muitos desses processos são aparentemente derivados daqueles mais básicos. A tecnologia modificou nossa relação com o mundo, mas nosso corpo ainda é fundamentalmente igual a milhares de anos. Por exemplo, hoje em dia ter destaque profissional pode ser um equivalente a ser líder do grupo e ter maior chance de sucesso com o sexo desejado. Aprender, gostar de aprender, além de ter a função clara de permitir que saibamos lidar com um maior número de situações diferentes, também é uma forma de se destacar no grupo. A mesma análise pode ser feita com o acúmulo de posses (significa destaque), além do fato de que mais provisões permitem uma vida mais tranqüila. Até mesmo comer está um pouco diferente hoje em dia: quem tem acesso a mais alimentos geralmente come mais do que o necessário, o que provavelmente é um reflexo da necessidade passada de armazenar energia para períodos mais magros.

Mesmo esses processos derivados das necessidades mais básicas (ou seriam eles mesmo necessidades básicas?) não explicam a ampla gama de desejos e vontades humanas. Parte dessa amplitude pode ser explicada por acontecimentos particulares que ocorrem com cada pessoa. Muitas vezes, satisfazer uma necessidade é acompanhado de algum outro acontecimento. Por exemplo, um pai pode agradar uma criança dando a ela um presente para demonstrar carinho. Junto com o cuidado do pai ocorre o recebimento de um objeto. Se ao invés do carinho, o pai freqüentemente presenteia, receber presentes pode tornar-se importante para a criança por estar relacionado com o carinho e o cuidado (necessidades básicas). Posteriormente, o simples ato de comprar alguma coisa pode ser muito importante para uma pessoa: ter algo novo pode estar intimamente relacionado com ser bem cuidado. É bastante provável que essa classe de relação seja estabelecida sem que o indivíduo perceba ou possa falar sobre ela. A indústria da propaganda é mestre em criar novos e completamente desnecessários desejos: produtos dos mais variados são apresentados junto com imagens de família, crianças, comida, sexo e uma infinidade de outras coisas importantes para nós.

Outras “necessidades” são muito mais temporárias e facilmente explicáveis. Por exemplo, se alguém está indo a uma escola, certamente terá que atravessar ruas. Neste momento, pode-se dizer que uma nova necessidade surgiu: a de chegar ao outro lado da avenida. Ter que ligar para alguém, do mesmo modo, também torna necessário um cartão telefônico, ou um celular; além do fato de que, é claro, ter que ligar para alguém é em si mesmo uma necessidade.

Eu não conheço todas as abordagens de Psicologia para saber exatamente quantas delas reconhecem todos os processos brevemente descritos aqui como fazendo parte do que se chama “motivação”. O que posso afirmar com certeza é que a análise do comportamento agrupa todas esses diferentes formas de necessidade sob o nome de Operações Estabelecedoras. Agora que muito foi dito sobre as vontades, já podemos definir o conceito adequadamente.

Apesar de não parecer à primeira vista, todos esses processos têm algo em comum: eles alteram a importância de alguns comportamentos. Sendo assim, definimos operações estabelecedoras como eventos que modificam temporariamente o valor, para mais ou para menos, de eventos reforçadores. Dizendo de modo mais amplo: são operações que alteram a importância da execução dos comportamentos.

O exemplo mais claro é o de alguém com fome. Depois de uma pessoa ficar muito tempo sem comer, a comida torna-se extremamente reforçadora e é bastante provável que muitos comportamentos de um indivíduo sejam direcionados a terminar com a fome. Ou seja, o reforçador comida ganha importância por conta da privação de comida. Por outro lado, logo após uma refeição farta, comida deixa de ser importante, ao ponto de que nenhum, ou quase nenhum, comportamento seja direcionado a consegui-la. Tanto a privação quanto a saciação de comida alteram seu valor de importância: privação para mais, saciação para menos.

É possível colocar esses fenômenos em uma unidade de análise, completando aquelas apresentas no primeiro e segundo textos da série sobre a complexidade do comportamento. Vamos ver como as operações estabelecedoras se encaixam em uma unidade de análise:

Operações Estabelecedoras (O.E.)
modificam o valor das relações abaixo
———————————————
SD’s ——> R ——> SR

.
A operação estabelecedora modifica não só o reforçador, mas todas as relações entre eventos e respostas presentes na unidade de análise. Isto é, quando se está com fome, não só a comida ganha importância, mas a geladeira também passa a ser mais procurada, assim como são executadas mais respostas que produzam comida. Para ficar mais claro, vamos substituir os termos por eventos:

O.E. (privação de comida)
aumenta a importância de comida
———————————————
SD (geladeira pós-mercado) –> R (abrir geladeira) –> SR (comida)

.
Agora vamos imaginar o oposto. Se o indivíduo tiver terminado uma refeição, não só a comida deixa de ser importante, mas também a ação de abrir a geladeira e a própria geladeira deixam de ser significativas. Provavelmente o indivíduo não vai se engajar em nenhum comportamento relacionado à alimentação. Esse desinteresse é, claro, temporário. Basta que a pessoa fique algum tempo sem comer para que todo o processo descrito acima seja invertido e muitos comportamentos sejam direcionados à satisfação da fome.

Mutatis mutandis, esses mesmos processos de saciação e privação ocorrem para virtualmente todas as necessidades humanas. Reparem que quando estamos privados, costumamos utilizar expressões como “eu quero”, “eu desejo”, “eu preciso” para falar do nosso comportamento. Quando estamos saciados, por sua vez, é mais comum que descrevamos nós mesmo como estando “de saco cheio”, “sem vontade”, ou mesmo “com preguiça”.

O conceito de operações estabelecedoras é muito parecido com o popular termo “motivação”. Sua vantagem é fazer referência a eventos do ambiente os quais muitas vezes são passíveis de mensuração e permitir relacionar esses eventos com o comportamento do indivíduo. Ainda assim, na prática clínica, é comum que operações difíceis de identificar estejam guiando o comportamento do cliente. Um bom início para conhecê-las é tornando claro quais são as conseqüências dos comportamentos do indivíduo e analisar junto com ele se essas conseqüências são realmente aquelas que se deseja obter (normalmente não são, visto que procurar a clínica indica algum problema).

Espero que este texto tenha ajudado a mostrar que é possível estudar desejo e vontade cientificamente. A chave para isso é não subestimar a importância e complexidade do processo "desejar" e teorizar e testar definições mensuráveis dele, ou de eventos relacionados a ele. Se nossa abordagem científica estiver correta, saciar uma necessidade vai tornar improvável que o comportamento que a produz aconteça. De forma oposta, privar de uma necessidade tornará mais provável que os comportamentos que as produzem ocorram. Esta é a teoria e apesar de ela precisar ser testada, é preciso tomar cuidados éticos: privar alguém é um procedimento bastante aversivo e não recomendado.

Alguns testes, por outro lado, são possíveis. Por exemplo, um garoto que faz muita birra. É preciso descobrir a operação estabelecedora por trás disso e, claro, o reforçador para este comportamento (em outras palavras, o que ele ganha com isso). Geralmente, birra indica necessidade de atenção e carinho. Existe uma maneira de investigar se o reforçador é mesmo esse e, portanto, se a operação estabelecedora é a falta de carinho: basta dar atenção ao garoto em situações em que ele não está fazendo nada. Se as birras pararem, está resolvido o enigma: o organismo, saciado de carinho, não tem necessidade de fazer birras; na verdade, perde temporariamente a vontade de se comportar assim. Na prática, isso não ocorre de forma tão simples, mas este exemplo é uma possibilidade verdadeira, especialmente em casos nos quais o cliente tem pouca habilidade verbal.

Assim como em toda ciência, estamos sempre prontos a mudar nossas idéias tão logo dados de pesquisas coloquem nossos conceitos sob suspeita. Hoje, a idéia da vez é operação estabelecedora: analisar como eventos do meio alteram a importância de alguns dos nossos comportamentos.

Esse texto mostra que a unidade de análise do comportamento humano reúne muitos eventos complexos. Mas ainda há mais complicações a serem especificadas. Ainda não foi comentado o papel dos sentimentos e da linguagem no comportamento. Esses dois importantes processos serão considerados em breve.

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Robson Faggiani