Microblog ou superchat ? (ii), ou Para ler no fluxo do Twitter

Mais sobre Bakhtin, o Twitter e o discurso que nele se produz

“Não vou viciar. Não vou viciar. Não vou viciar.”

@fsalvaterra embarcando no Twitter

Com uma performance ainda discreta em relação ao Orkut ou o Facebook, o Twitter já se afigura, todavia, dado o crescimento galopante de sua base de usuários, como uma das mais ativas e capilarizadas redes sociais existentes até hoje. Qualquer dúvida quanto a isto pode ser imediatamente dirimida mediante o simples cruzamento, no módulo de pesquisa do Twitter, das palavras Orkut e parado.

Muito do apelo e alcance da nova mídia reside na atomização do discurso que nela se produz em sentenças simples a comportar, quando muito, um sujeito, um verbo e um predicado, de sorte que seu já célebre paradigma de 140 caracteres tenha adquirido, em pouco tempo, o próprio status de unidade de formato lingüístico que já pertenceu, a seu tempo, ao grande romance, à novela, ao conto, à crônica e ao post. Tal entendimento se faz mais claro à luz da concepção dialógica da comunicação discursiva formulada por Mikhail Bakhtin, segundo a qual

unidades discursivas, designadas por enunciados, são delimitadas pela alternância entre os falantes.

Para Bakhtin,

o sentido de um discurso não se produz internamente a cada enunciado, mas no diálogo que se instaura no conjunto das áreas de tensão entre os mesmos.

Central, também, à concepção enunciativa da linguagem de Bakhtin, são as noções de

indissociabilidade entre cada enunciado e a figura do homem de idéias por traz do mesmo. Sob tal premissa, todo e qualquer enunciado só é dado à existência por meio de sua estreita vinculação a um sujeito que o sustente; e

responsividade, segundo a qual em todo enunciado está contida a existência, implícita ou explícita, tanto dos anteriores aos quais responde como daqueles que enseja em resposta a si mesmo.

Tais formulações bakhtinianas são, a nosso ver, essenciais para a compreensão da rápida popularização do Twitter entre as esferas comunicativas dos mais variados campos de atividade humana, bem como da alta viralidade da propagação de sentidos em seu ambiente.

São comuns as referências, mais do que a outras plataformas de relacionamento, ao Twitter como ferramenta. Tal condição distingue, no âmbito digital, principalmente sistemas genéricos, de definição simples, em cujo desenho não esteja previsto um conjunto acabado de possíveis aplicações. Tal é o que se dá com o Twitter, que, conquanto tenha inicialmente competido na arena dos sites de relacionamento, logo obteve significativas adesões por parte de atores comerciais (invariavelmente os primeiros a explorar qualquer novidade), jornalísticos, científico-acadêmicos e artístico-criativos – cada uma destas categorias a merecer, por sua vez, um olhar mais dedicado, a ser lançado num próximo ensaio.

Novatos menos avisados tendem a ver na restrição de mensagens no Twitter a um total de não mais do que 140 caracteres também uma limitação às possibilidades discursivas. Ao contrário, é precisamente esta concisão forçada que faculta a seus usuários mais consistentes a contemplação abrangente dos fluxos discursivos em que estão contidos aqueles sentidos aos quais se quer ter acesso. Para tanto, é, todavia, preciso que se esteja munido de estratégias capazes de realçá-los em meio ao ruído como o fluxo tende a ser percebido à medida em que se expande o elenco de falantes ouvidos simultaneamente. Disto resulta que um dos temas mais recorrentes no ambiente é o próprio uso que se faz do mesmo. Nesta categoria temática se incluem desde enunciados simples contidos em tuitadas avulsas até links para manuais de uso de detalhados e abrangentes.

Cabe, aqui, observar que o amplo discurso concebido em apoio ao uso do Twitter, mutante e heterogêneo, está longe de convergir para um consenso universal. Ao contrário, se distingue por certa vocação ao abrigo de dissensos tais como, por exemplo, casos em que

recomendações frontalmente contraditórias são proferidas por excelentes blogueiros quanto ao teatro imaginário para o qual um tuiteiro deva se dirigir tais como, por exemplo, as de @moorsee: “Dance like nobody’s watching. Ttweet like nobody’s following” e @cardoso: “Quer ser bem-sucedido aqui? Fale para as pessoas.” – claramente indicativas, nestes casos, de grandes consensos ou éticas únicas mas, ao invés, diretrizes, por vezes contraditórias, de diferentes gruas de relevância para cada uso que se faça da ferramenta; bem como

a frequente difusão, por oráculos das mídias sócias quase sempre em tom bem-humorado, de sentidos e leituras de realidade em franca oposição ao ideário das próprias fontes em que são citados. Particularmente ilustrativo desta situação é a referência, tuitada pelo oráculo das mídias sociais e do novo jornalismo Jay Rosen (NYU) ao post Social Media is a Myth, publicado por Greg Davis no polêmico site Social Media Rage – que me remete, de imediato, ao artigo Blogosfera, um Delírio, publicado por Bruno Cardoso em 2007 aqui no OPS! e corolário, por seu turno, de There is no blogosphere (2006), de Jeff Jarvis.

Em ensaio anterior, afirmamos que o Twitter se diferencia de outras plataformas relacionais de natureza essencialmente imagística principalmente por sua índole eminentemente discursiva. Outra distinção importante a ser feita entre o Twitter e tais ambientes diz respeito à reciprocidade. As conexões instauradas em ambientes de relacionamento tais como o Orkut e afins implicam, na maioria das vezes, na existência de vínculos recíprocos entre usuários. Com efeito, a própria designação, em certos ambiente, do vínculo relacional por amizade favorece a vinculação recíproca.

Não é, todavia, o que se observa no contexto do Twitter, cujo layout relacional se caracteriza pela distinção entre fontes e seguidores, incapaz de exercer, por si só, uma coerção significativa à vinculação recíproca entre uns e outros. Com efeito, o próprio Twitter indisponibilizou, recentemente, uma opção de configuração previamente existente para que usuários passassem a seguir automaticamente cada um de seus novos seguidores. Mais do que mera medida anti-spam, tal movimento se afigura como um claro sinal de que a fraca reciprocidade se constitua, com efeito, num atributo essencial à própria arquitetura e funcionalidade do ambiente, com implicação direta na alta viralidade na propagação de conteúdo no mesmo e, portanto, em sua ampla aceitação como ferramenta aberta aos mais diversos usos.

Dados as quantidades astronômicas de atores e conexões envolvidos em redes sociais de escala global, bem se prestam as mesmas à analise por meio de modelos matemáticos. Pode-se, deste modo, considerar que as redes em sites de relacionamento como o Orkut e similares se configuram analogamente a

estruturas cristalinas de estados sólidos, pouco dinâmicos não obstante seus elevados índices de concectividade; ou ainda a

polímeros nos quais bolhas adjacentes se tocam sem que, necessariamente, fluxos se estabeleçam entre as mesmas;

enquanto no Twitter, onde usuários tendem a possuir elencos relativamente diferenciados, ainda que nunca ou raramente estanques entre si, de fontes que acompanham e de seguidores, enunciados tendem a viajar, especialmente por meio do recurso ao ReTweet, para bem longe de seus pontos de enunciação originais. Cabe, aqui, ressaltar que Twitter acaba de anunciar a futura incorporação à própria plataforma de facilidades automáticas para envio de o ReTweets – sugerindo, neste caso, mais do que mera otimização do armazemento de mensagens redundantes em seus servidores, também um reconhecimento implícito deste expediente como um de seus atributos distintivos essenciais. Sob este prisma, a propagação de sentidos no Twitter também pode ser metaforicamente entendida como um contexto ressonante.

Interessantes abordagens afins, baseadas em modelo conectivistas físicos ou matemáticos, também são formuladas por Kevin Marks (@kevinmarks) em How Twitter works in theory e por Carlos Cardoso (@cardoso) em Três anos de blog em uma dedada.

Quando deitei o primeiro rascunho para este ensaio dias atrás, a notícia mais replicada no Twitter era

a aquisição do Friendfeed pelo Facebook – uma transação de valor estimado em 50 milhões de dólares que teria por objetivo agregar o potencial necessário para competir com o Google pelo segmento de buscas na web.

Enquanto isso, surgiam, discreta e quase simultaneamente em meio ao denso fluxo de mensagens relativas à fusão dos portais de relacionamento, notícias acerca de dois eventos profundamente relevantes e correlacionados, a saber,

o lançamento por Barack Obama, naquele mesmo dia, do site de ausculta social da Casa Branca para a reforma da seguridade social dos EUA; e

a publicação, no blog de Henry Jenkins (MIT), de um ensaio por Daren Brabham sobre Crowdsourcing and Governance.

A enorme desproporcionalidade entre, de um lado, a relevância de cada um dos eventos acima para as evolução das redes sociais e, de outro, a intensidade com que reverberaram, no fluxo discursivo das fontes acompanhadas, as notícias sobre os mesmos – o fato de ordem econômica despertando neste caso, curiosa mas não surpreendentemente, muito mais interesse do que os de natureza política ou acadêmica – evidencia a necessidade de adoção, para a leitura do Twitter, de estratégias eficazes de realce, em meio ao ruído com é percebido seu fluxo, do que seja mais relevante a cada usuário.

Abro parêntesis. A constatação de um maior interesse por um grande fato econômico do que por fatos de grande interesse social simultaneamente ocorridos nas eferas política e acadêmica remeteu-me de pronto à didática e espirituosa asserção por Anne Leonard, no começo de seu instigante documentário A História das Coisas (The Story of Stuff), de que “Se as corporações parecem por vezes maiores do que os governos é por que são, efitivamente, maiores do que os governos”. Fecho parêntesis.

Não posso, de resto, evitar uma breve incursão pelo babélico território dos manuais de uso, apenas para dizer que,

primeiro, não vou ao Twitter em busca de seguidores e sim de fontes qualificadas; noutras palavras, me importo muito mais com o que leio do que com quem lê o que escrevo – meu discreto número de seguidores sendo, deste modo, meramente acidental e sem nenhuma relação com meu apreço pela ferramenta;

segundo, sigo aproximadamente 100 fontes – quantidade máxima, empiricamente determinada, de enunciantes cujo fluxo de mensagens combinadas consigo acompanhar na íntegra sem uma dedicação semi-exclusiva; e

terceiro, atualizo continuamente o elenco de fontes, excluindo as mais verborrágicas e/ou irrelevantes dentre elas em favor de novas que incluo, de cuja existência tomo conhecimento quase invariavelmente rastreando as fontes originais das melhores retuitadas que recebo. Configuro, assim, meu Twitter como uma revista ideal, cujas matérias se tornam continua e progressivamente mais interessantes a cada dia.

* * *

No início deste texto, citei as primeiras palavras proferidas no Twitter por @fsalvaterra quando lá chegou inspirado pela leitura do ensaio anterior a este, Microblog ou superchat ?, ou Tivesse Bakhtin, pai do Twitter, vivido para conhecê-lo. Sensatas palavras, cabe observar, posto que o superchat, reconhecidamente, vicia. @mashable realizou uma popular enquete sobre o que vem antes, o Twitter ou o café da manhã. @lent disse que antes a gente acordava e olhava o email. já faz tempo que o twitter vem primeiro”. Minutos atrás, perguntei a @tgsaraujo, confessando-lhe inveja, como conseguia conciliar a feitura de uma dissertação com o Twitter, ao que me respondeu “Rapaz, até hj eu tento responder essa pergunta… No fim das contas as duas coisas acontecem simplesmente…”. Finalmente, para que este ensaio começasse a tomar forma, para além das notas esparsas deitadas em meio à leitura do fluxo, precisei jejuar do Twitter por mais de 24 horas.

Enquanto retocava o texto para publicação, os fatos mais tuitados eram

a exibição da primeira de uma série de matérias sobre o Twitter pelo Jornal Hoje, da rede Globo, e

uma desaceleração sistêmica percebida na atividade de blogs, simultânea à desativação de alguns deles por medidas judiciais;

Mais discretamente, se falava sobre

o iminente advento de uma Real Time, ou Push Button, Web.

Sob o risco, entretanto, de que este ensaio se estenda indefinidamente ao sabor do fluxo, deixo ao leitor a análise de possíveis padrões existentes entre a evidência dos eventos acima em suas respectivas mídias.

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Augusto Maurer