O caso do caso


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Você já ouviu falar dos famosos pronomes pessoais do caso reto e do caso oblíquo, não é? Hoje você vai entender um pouco melhor o que é essa história de caso, por que isso acontece, e vai ter uma idéia de línguas em que há muito mais do que apenas dois casos…

Bom dia! Hoje resolvi falar a respeito de um assunto que é um tanto enigmático para muita gente, mas que no fundo não tem grandes segredos: o tal do "caso".

Vocês já devem ter ouvido falar dos pronomes do "caso reto" e do "caso oblíquo", não é mesmo? Talvez vocês tenham até mesmo decorado para fazer a prova de gramática: "eu tu ele nós vós eles" é o caso reto; o caso oblíquo é "me mim comigo te ti contigo se si consigo lhe o a" e por aí vai…

Mas afinal, o que é esse tal de caso? Talvez ninguém nunca lhe tenha explicado, só mandado decorar, como acontece muitas vezes (já contei a vocês sobre os tempos e aspectos do verbo, não?). Então, vamos lá que eu explico: o caso é a mudança de forma de uma palavra para se adaptar à sua função sintática.

Ih, lá vem complicação… Função sintática? Outra coisa que vocês devem ter ouvido falar lá no Ensino Médio, coisas como sujeito, objeto direto, adjunto adverbial etc… Mas a coisa é mais simples do que parece. Vamos ao exemplo:

(1) A Maria beijou o João.

Bom, essa frase aí em cima todo mundo entendeu: ela quer dizer que a Maria beijou o João, ora… Sem segredo nenhum. Agora, façamos de conta que quem está dizendo essa frase é o próprio João. Como o João não é o Paulo Maluf nem o Pelé, ele provavelmente vai chamar a si mesmo pelo pronome "eu", correto? Então ele poderia dizer:

(2) A Maria beijou eu.

Mas essa frase aí soa meio infantil, soa uma linguagem muito informal, sei lá. Normalmente, nós dizemos assim:

(3) A Maria me beijou.

Olha só que interessante: o "eu" da frase (2) se transformou no "me" da frase (3), não é mesmo? Podemos dizer que o "eu" de (2) e o "me" de (3) são a mesma palavra, só que em duas formas diferentes. E por que razão ela muda de forma? Aí está o segredo: "eu" é usado quando for o sujeito da frase; já o "me" é usado quando for objeto.

Pode observar: fica muito estranho, para não dizer impossível, formar uma frase em que o "me" seja sujeito (algo como "me li o livro", significando "eu li o livro"); o "me" é sempre objeto. Já usar o "eu" como objeto até que dá certo ("beija eu", já dizia Marisa Monte), mas não soa lá muito natural, para não dizer que a gramática normativa considera isso incorreto. Então, a forma usada como sujeito se chama "caso reto", e a forma usada como objeto se chama "caso oblíquo".
(E por que esses nomes? O que tem a geometria a ver com a gramática? Essa é uma boa pergunta, e não temos uma boa explicação para ela. O que sabemos é que esses termos foram criados lá pelos gregos, desde Aristóteles. Talvez porque o caso reto seja o caso mais "natural" da palavra, e o que não é reto é oblíquo, então ficou assim.)

E os outros pronomes, como é que ficam? Aí já fica mais complicado, porque no português brasileiro do dia-a-dia nós já não estamos mais usando muitos pronomes oblíquos. Quer ver só? Voltando à frase (1), eu poderia querer substituir "o João" por "ele", e ia ficar:

(4) A Maria beijou ele.

Essa frase é bem natural na nossa linguagem do dia-a-dia, não é? Mas é incorreta segundo a gramática normativa. Como teria que ser? Assim:

(5) A Maria beijou-o. / A Maria o beijou.

Vocês devem ter aprendido essa forma na escola, não é? E provavelmente vocês usam essa forma nos textos escritos ou na fala mais formal. O que está acontecendo aí? Exatamente a mesma coisa: usamos a forma "ele", do caso reto, quando for sujeito, e a forma "o", do caso oblíquo, quando for objeto direto.

No caso da terceira pessoa, ainda vai ter diferença se for objeto direto e objeto indireto. Quer ver?

(6) A Maria entregou o livro ao João.

Se eu for substituir o "ao João" por um pronome, eu tenho duas opções: ou eu uso a expressão "a ele" (com preposições, neste caso, vale usar o pronome "ele"), ou eu digo assim:

(7) A Maria lhe entregou o livro.

Que é outra frase que quase não usamos na língua falada do dia-a-dia. O que acontece com esse "lhe"? Ele é também do caso oblíquo. Qual é a diferença entre o "o" da frase (5) e o "lhe" da frase (7)? É muito simples: o "o" é para objetos diretos, e o "lhe" é para objetos indiretos.

Simplificando um bocado (eu não falei, por exemplo, de certas complicações quando colocamos preposições no meio da história), é assim que funciona o caso: a forma do caso reto serve para o sujeito, a forma do caso oblíquo serve para o objeto. E no caso do português, isso só acontece com os pronomes pessoais. Mas não precisa ser assim: existem línguas que, além de terem muito mais casos do que apenas o reto e o oblíquo, têm casos em todos os substantivos e adjetivos. Quer ver só?

Imagine uma língua como o latim, o grego ou o russo. Todas elas têm casos em todos os substantivos. Vamos dizer, numa dessas línguas, a frase (1): A Maria beijou o João. Nesse caso, "A Maria", como é o sujeito, ficaria no caso reto, e "o João", como é o objeto, ficaria no caso oblíquo. Vamos ver como fica em latim. Maria é "Maria", beijou é "osculatur", e João é "Johannes".

(8) Maria osculatur Johannem.

Olha só: o nome "João", em latim, seria "Johannes", mas como é objeto direto, então tem que pôr no caso oblíquo. Muda, então, para "Johannem". E se fosse o João que tivesse beijado a Maria? Ficaria, então:

(9) Johannes osculatur Mariam.

De novo: "Maria" mudou porque agora não é mais sujeito, é objeto direto.
Talvez você tenha percebido, mas se não percebeu, eu conto: em português, como é que eu sei que foi a Maria que beijou o João, e não o contrário? É pela ordem: como a Maria vem primeiro, eu sei que foi ela que beijou o João. Mas em latim (ou grego, ou russo etc.), o caso me mostra quem é o objeto direto e quem é o sujeito. Então eu posso dizer, por exemplo:

(10) Johannem osculatur Maria.

O Johannem venha primeiro, mas mesmo assim foi a Maria quem beijou, porque é a Maria que está no caso reto. Percebeu?

Eu dei aqui um exemplo mostrando só dois casos, o reto e o oblíquo, mas na verdade, as línguas costumam ter muito mais do que isso. O latim, por exemplo, tem seis (algumas palavras têm sete). Só para ilustrar:

Caso nominativo (ou caso reto): é o caso que indica o sujeito
Caso acusativo: indica o objeto direto
Caso vocativo: indica a pessoa a quem você está se dirigindo
Caso dativo: indica o objeto indireto
Caso genitivo: indica o possuidor (como "carro do João", por exemplo)
Caso ablativo: indica diversos tipos de adjunto adverbial
Caso locativo: indica o adjunto adverbial de lugar (só se usa, obviamente, para palavras que significam nomes de lugares, como cidades, por exemplo)

E há línguas com oito, dez casos… Quem sabe eu fale mais a respeito em outro matabicho. Vamos nos contentar com os nossos dois do português, que já está de bom tamanho!

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Bruno Maroneze