James Abbot McNeill Whistler

A obra de Whistler merece mais destaque do que a sua biografia enganadora.

Holker: Qual é o assunto em "Noturno em Negro e Dourado"?
Whistler: É uma peça noturna e representa a queima de fogos nos jardins Cremorne.
Holker: Não é uma vista de Cremorne?
Whistler: Se fosse intitulada "Uma Vista de Cremorne" certamente que não traria a não ser aborrecimentos para os observadores. É um arranjo artístico. É por isso que o chamo de noturno…
Holker: Quanto tempo leva para pintar o "Noturno em Negro e Dourado"? Em quanto tempo você o finaliza?
Whistler: Em alguns dias – um dia para fazer o trabalho e outro para finalizá-lo.
Holker: O trabalho de dois dias? É por isso que você cobra 200 guinéus?
Whistler: Não. É o que peço pelo conhecimento que acumulei durante o trabalho de uma vida toda.

O diálogo acima foi retirado de uma sessão do julgamento do caso envolvendo pintor James Abbot McNeill Whistler e o crítico John Ruskin. Holker era o advogado de Ruskin, que foi processado por Whistler em função de um texto excepcionalmente agressivo em que o crítico acusava o pintor de cobrar uma fortuna para jogar tinta na cara do público. Whistler quis que o julgamento se transformasse numa arena de discussões sobre a função e o valor da obra de arte. Whistler acabou por vencer a contenda, mas arruinou-se financeiramente por causa das custas do processo.
Creio que hoje Whistler é mais conhecido por histórias como essa do que por sua pintura, muitas vezes tida como superficial e frívola. Claro, há o retrato de sua mãe, também chamado de Arranjo em Cinza e Negro, uma das pinturas mais conhecidas do mundo, mas essa é família das monalisas, últimas ceias e outras pinturas icônicas: já vimos tantas vezes, e em tantos contextos diferentes que perdemos a capacidade de olhá-las como se fosse pela primeira vez. Feito esse desconto, penso que a pintura de Whistler acabou por ocupar um lugar secundário em relação à própria personalidade do artista, o dândi por excelência. Seu dandismo exagerado, seu gosto pela publicidade, e sua ligação com certos movimentos estéticos passageiros de final de século XIX desviaram a atenção de sua obra, que ficou com certa má-fama, como se Whistler fosse um Boldini qualquer. Ele não é.
O diálogo da abertura, também bastante conhecido em várias configurações diferentes, dá um bom indício sobre o modo como Whistler pensava sua obra. A execução do trabalho tem que ser rápida, e o gesto do pintor tem que carregar toda a sua história e toda a história da pintura. Essa lição Whistler aprendeu com o estudo da obra dos artistas orientais, especialmente dos gravadores e dos praticantes do sumi-e.
Seu método era curioso: costumava sair antes do sol nascer e ia até o local que pretendia pintar. Ao chegar, Whistler simplesmente olhava, quando muito tomava algumas notas. Sua intenção era ficar “encharcado” com as impressões visuais que determinados motivos lhe ofereciam. Quando sentia que havia conseguido seu intento, Whistler voltava para o seu estúdio e só então começava a trabalhar com tintas e pincéis, a partir do que restou da impressão visual em sua memória. Adaptou a técnica ao seu modo de trabalho, e foi isso o que causou a indignação de Ruskin, que via sua pintura com grandes reservas por considerá-la “uma brincadeira de mau-gosto”.
Não era brincadeira e muito menos de mau-gosto. Sua pintura é rigorosa e pede, nos melhores momentos, uma abordagem fenomenológica, como a pintura de Cézanne. Seus estudos revelam um artista muito avançado, que pensava as relações formais, tonais e cromáticas de maneira quase abstrata. O quadro que causou a revolta de Ruskin, reproduzido ao lado, está no limiar da pintura figurativa.
É pena que detalhes de sua biografia e os escândalos nos quais se envolveu acabem por eclipsar sua pintura, suas gravuras, seus pastéis e suas aquarelas. Sua obra é poderosa e consistente, e não merece ficar em segundo plano.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.