Jung e sua Turma

Sombra, anima, animus, self… os arquétipos do inconsciente coletivo descritos por Carl Jung povoam a mente de todo ser humano… e a literatura também.
Da última vez em que estive por aqui, mencionei a crítica psicológica. A idéia é bastante simples. A literatura é, inevitavelmente, um esforço de imaginação. A imaginação é regrada pelo inconsciente. Isso é inevitável.

Da última vez em que estive por aqui, mencionei a crítica psicológica. A idéia é bastante simples. A literatura é, inevitavelmente, um esforço de imaginação. A imaginação é regrada pelo inconsciente. Isso é inevitável. Por mais que um autor tenha controle sobre sua própria obra, as opções literárias que ele faz, sua preferências e rejeições, estão fadadas a refletir complexos e estruturas da sua mente inconsciente. Isso não é nenhum demérito para o artista, muito pelo contrário… Todo mundo é influenciado pelo seu inconsciente, em medidas muito mais largas do que desconfiam ou gostam de admitir, e um bom escritor tem muito a ganhar ao criar obras que atigem não só nosso universo racional, mas também os recessos mais profundos de nossas mentes.
 
O próprio termo complexo de Édipo remete à literatura… vienense instruído, o dr. Freud conhecia bem seu Sófocles. E também curtia um Dostoiévski, o que era inevitável… com sua trama sobre um filho que mata o pai por causa de uma mulher, Os Irmãos Karamazóvi é quase um tratado de teoria freudiana aplicada. Crime e Castigo não fica muito atrás… com toda aquela culpa e dissociação, pra não mencionar a perseguição do superego manifesto no Inspertor Petrovich, Raskolnikov podia usar umas boas sessões de terapia. Mas Freud é carne-de-vaca e não pretendo me estender muito mais sobre ele não… Em literatura o interessante mesmo é brincar de caçar arquétipos jungianos.
 
Carl Gustav Jung foi discípulo de Freud, só que menos obcecado com a própria mãe. Ele era meio doido também, e dado ao misticismo, embora tenha se contido a um passo de começar a caçar discos voadores com raios de energia sexual (coisa que o Wilhelm Reich, por exemplo, não hesitou em fazer). A pegada de Jung era desvendar os mecanismos de funcionamento do inconsciente… descobrir como exatamente esse universo mental humano, que está sempre operante e não só quando você está puxando um ronco, afeta a mente consciente. Parte desse processo, segundo o Jung, se dava através da influência de arquétipos… construtos mentais presentes em toda psiquê humana que representam partições de nossa personalidade e tem grande influência sobre como lidamos com o mundoa o nosso redor.
 
(Sei que nesse ponto os psicólogos de plantão devem estar dizendo “arquétipos não são nada disso” mas… não sejam chatos!)
 
O primeiro arquétipo é a sombra, que é basicamente tudo aquilo que a pessoa renega em seu próprio ego. As características que você acha difícil aceitar em si, como a raivae a violência, são atribuídas a esse gêmeo sombrio. Note que a sombra não é necessariamente ruim, ou um repositório de defeitos… características saudáveis que são reprimidas, como a sexualidade, também se tornam atributos da sombra, e o processo de crescimento individual envolve conciliar esses atributos rejeitados ao próprio ego.
 
O exemplo clássico da sombra é o caso de William Wilson, que, no conto de Poe, era perseguido por um duplo idêntico, que o lembrava da falência moral a que se submetera. Mas, o exemplo que eu acho que melhor descreve a sombra se encontra em um contemporâneo do gótico norte-americano. O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, narra a desventura de um aristocrata decadentista que trava um contrato com o atrevido, garantindo-lhe eterna juventude… que envelhecerá em seu lugar é sua imagem em um retrato, que Dorian mantém sabidamente encoberto. Conforme Dorian comete as mais diversas atrocidades, o retrato se desfigura mais e mais, até que, quando é finalmente revelado, a imagem é de um ser deformado e desprezível. Isso é a sombra em resumo. O repositório daquilo que não queremos ver em nós mesmos, do que somos, mas preferimos negar. Dorian morre ao ver sua imagem, mas nós temos que aprender a aceitar nossos retratos sombrios, para sermos criaturas mais completas e felizes consigo mesmas.
 
A anima, por sua vez, é o arquétipo feminino que existe dentro de todos os homens… algo muito mais complexo que aquilo que a psicologia barata chamou de “mulher interior”. Na verdade, a anima é a sensibilidade masculina, a ligação entre os homens e seu inconsciente. É a anima quem guia os homens em seu descobrimento interior, e isso fica evidente em uma das suas representações literárias mais famosas, a Beatriz de Dante, que na Divina Comédia ciceroneia o poeta em sua viagem ao Paraíso. Da mesma forma, é o amor e inclinação espiritual de Sonya que redime o já mencionado Raskolnikov… O problema é, a anima nem sempre é boazinha. Sendo um aspecto feminino, ela fatalmente incorpora o que os preconceitos masculinos sobre o que uma mulher é… e, assim, a anima pode se manifestar como uma bruxa cruel de contos de fada, ou uma sedutora capaz de arruinar todos à sua volta, como a Grushenka de Dostô (na continuação de Karamazóvi, Grushenka teria papel crucial na derrocada de Aléksei, da mesma forma como fez com Misha e Fiódor… qualquer dia conto essa história procês). Outro problema é a anima desencontrada… no angustiante labirinto de O Processo, Josef K. tromba com diversas manifestações femininas… a vizinha, a empregada do advogado, a mulher no júri… e nenhuma delas é capaz de ajudá-lo a se desvencilhar da situação em que ele se encontra, perdido nos meandros de seu próprio inconsciente torturado.
 
(Talvez isso ocorra porque Josef K. sempre encara essas mulheres como objetos sexuais, sendo incapaz de ver a anima em um aspecto mais evoluído… mas aí vou entrar em especificidades mais apropriadas para a coluna de psicologia.)
 
Se homens tem anima, as mulheres tem o animus (e vagina, segundo mamãe… aguardo ansiosamente o dia em que poderei conferir). O animus não é um correlato exato da anima… no mundinho de Jung, mulheres tem naturalmente uma conexão boa com o inconsciente e não precisam de um arquétipo para ajudá-las nisso. A função do animus, nesse caso, é ser o lado racional feminino, o responsável pela intelectualidade fria e desapaixonada com que homens sempre podem contar… mas mulheres não. E, da mesma forma que a anima representa um ideal feminino para a cuecada, o animus também incorpora (em parte) a visão menina do homem perfeito. Isso explica o Mr. Darcy de Orgulho e Preconceito. Meio distante e empertigado ele é, no entanto, o príncipe encantado de Elizabeth Bennet… e de Jane Austen também. O problema é quando o animus foge ao controle, e se torna uma presença opressora na sensibilidade feminina, uma voz autoritária sempre reforçando preconceitos e dizendo que você “não é boa o bastante”. Jason, o mais velho dos irmãos Compson de O Som e a Fúria, com sua determinada missão de humilhar e dominar o espírito rebelde da jovem Miss Quentin é uma perfeita representação de um animus supercrescido e devastador… e foi criado por um homem. Acontece. Outro bom exemplo de anima, o espírito de Catherine que atormenta o machão Heathcliff de Morro dos Ventos Uivantes ao lembrá-lo de que ele também tem sentimentos, foi criada por uma mulher…
 
Todo homem tem anima, toda mulher tem animus. Diferente do que seu preconceito pode dizer, esses arquétipos fora do controle não geram nenhum tipo de homossexualidade… A mulher dominada pelo animus é o tipo frio e interesseira, incapaz de lidar com seu próprios sentimentos e indisponível para a criação de um laço afetivo verdadeiro (tipo a Mildred de Servidão Humana)… muito diferente do estereótipo da “sapatão” assexuada essa mulher pode até ser hipersexualizada… o famoso tipo que usa sedução para compensar total falta de auto-estima. Já o homem que é controlado por seu lado feminino é inseguro e exigente, como um machão ciumento e paranóico. Por outro lado, reprimir anima ou animus é má idéia… o resultado é um homem insensível e desprovido de qualquer auto-consciência (e auto-crítica) ou, no caso das mulheres, uma vaca louca. Com o perdão da franqueza.
 
O último arquétipo, caso alguém ainda esteja lendo, é o self. Esse tipinho é a totalidade do ser… e, talvez, de todos os seres. Entranhado bem no meio do inconsciente, o self é o objetivo do processo de auto-descoberta… é só quando você alcançar seu self que você vai… vai… bom, sei lá. Ser iluminado, talvez. Ou atingir a paz interior. Fazer as pazes com seu self é um processo tão ou mais complicado quanto superar os arquétipos anteriores, com todos seus complexos ou armadilhas. Em Solaris, de Stanislaw Lem, o planeta é a própria encarnação do self, cuja compreensão é o objetivo final da expedição liderada por Kris Kelvin… tarefa que não é fácil, pois a busca por contato com Solaris faz com que os expedicionários sejam forçados a encarar todos seus traumas e arrependimentos interiores, o que torna o livro uma espécie de tradução literária do que seria a trilha da individuação, o esquema de desenvolvimento psicológico descrito por Jung.
 
O self é frequentemente representado como algo divino e além da compreensão humana… no final da Divina Comédia, Beatriz termina por levar Dante até o Empíreo, a reunião de anjos no centro do Paraíso que é também a completitude do espírito humano (e, na versão com gravuras de Doré, também é o desenho mais foda de bonito). Elemento principal do inconsciente, o self não é apenas o fim do caminho, mas também seu início… é com uma manifestação do self que costuma começar o caminho da individuação. É o caso do fantasma do velho Hamlet, que põe o filho na trilha de auto-conhecimento em que ele terá que superar o ciúme obsessivo por sua mãe para atingir a maturidade (representada pelo trono da Dinamarca). Claro, Hamlet não se dá muito bem… ele termina causando a morte de sua anima e é destruído ao confrontar sua sombra (que é representada por Laertes).
 
Além de fazer parte integrante do inconsciente coletivo, os arquétipos permeiam a literatura. Agora que vocês tem noção do que estou falando, talvez eu faça umas críticas de viés mais psicológico pora qui no futuro… É divertido, e também importante. Nos dias de hoje vigora um certo utilitarismo literário que considero desprezível. Os bons livros são aqueles que falam de eventos atuais, ou que trazem algum conhecimento prático (muitas vezes de utilidade questionável, mas enfim…). Nesse contexto os romances clássicos são tratados como uma curiosidade, quase cultura inútil… O marido de uma amiga minha certa vez, ao vê-la lendo O Vermelho e o Negro, chegou a perguntar “Por quê você está lendo isso?”… O homem não entendia o valor de se ler um livro do século XVII. Mas ele existe. Cada romance, cada grande história, representa uma parte do quebra-cabeças da experiência humana. Reflexão sobre os conteúdo dessas obras, e o efeito delas sobre nós, nos força a encarar verdades sobre a condição humana, expandindo nossos mundos interiores e iniciando a trilha de auto-descoberta que é o objetivo da psicoanálise. Literatura serve como uma imagem especular da humanidade, seus medos e esperanças, suas crenças e fantasias. Mas um espelho não é só um utensílio de decoração. É também uma ferramenta.
About the author

Felipe Damorim

Felipe Damorim se formou em uma faculdade, e desistiu de outras duas. Editou livros, publicou contos, manteve blogs e dirigiu filmes. As pessoas dizem que gostaram de tudo, pelo menos na cara dele.